Olá, pessoal.
Cá estamos novamente, com mais uma parte desta estória movimentada, divertida e que ao mesmo tempo nos faz pensar. Também aguça a curiosidade e dá vontade de ler mais, não acham?
Certo, meu povo, aí vai a parte 7. Espero que gostem!
7
O
psicotécnico foi simples, mas um pouco demorado. No final, numa
apostila de capa laranja eu deveria assinalar a lápis quais
atividades gostaria de executar, escritas embaixo de um desenho tosco
que a descrevia. Desde as mais óbvias como "luta corpo a
corpo", " lidar com munições" e coisas assim, até
as mais prosaicas como "cortar carne", "descascar
batatas", etc. Além disso, tive de preencher numa série de
formulários os mesmos dados pessoais. Pensei comigo que, como a
dotação orçamentária das Forças Armadas nunca foi lá grande
coisa, eles acharam uma solução simples e até mesmo óbvia para
arranjar a mão de obra necessária para preencher a vastíssima
papelada gerada todos os anos em virtude do processo de seleção: Os
próprios conscritos. Nem preciso dizer que tive uma dificuldade
razoável para preencher aquilo tudo, porque sou destro e tinha
"estourado" justamente este braço na fase anterior. Sala
um tanto vazia. Consegui contar por volta de uns trinta. Se estiver
correto, apenas dez por cento daquele povo todo chegou até esta
etapa da peneira.
À
medida que íamos terminando os testes, levantávamos a mão e o
aplicador vinha até as carteiras(iguaizinhas às da escola estadual
onde eu tinha estudado) e recolhia os papéis. Em seguida, uma
entrevista, após o que o sujeito era mandado para o prédio da
administração para pegar o seu CAM, onde deveria estar carimbado no
verso a data do retorno para se inteirar do resultado do psicotécnico
e, se aprovado, seguir para o próximo processo. Só estavam neste os
certificados dos aprovados nos testes físicos que o "sub"
tinha levado. Os 80 que o realizaram foram separados assim como o
pastor separa as ovelhas dos cabritos:
À
direita os reprovados; os que gozariam da "liberdade gloriosa
dos filhos do Altíssimo."
À
esquerda os aprovados; os destinados à danação, a "punição
judicial do fogo eterno".
Dirigi-me
à administração, conforme mandado. Me apresentei ao soldado sentado
numa escrivaninha com pilhas de papéis à direita da porta
principal, no hall de entrada. Ele me apontou uma cadeira do lado
oposto e disse-me para esperar. Uns cinco minutos se passam, quando
vejo um soldado entrar. Não era um soldado qualquer. Era "o"
soldado. Poderia reconhecê-lo em qualquer lugar. O porco
filho-de-uma-cadela que me aplicou o trote do "campo minado".
Ele era um polaco cabelo cor de fogo, tipo físico mediano e um tanto
desengonçado. Quando se deu conta da minha presença, diminuiu o
passo, olhando fixamente para mim. Fiz a melhor cara de "cê
tá fodido"
que pude, ao mesmo tempo em que discretamente batia com o punho
direito fechado na palma da mão esquerda. Ele não se intimidou.
Pelo contrário. Fez cara de "tenta
a sorte",
ao mesmo tempo que sorria com ar de deboche por constatar que sua
sacanagem tinha dado certo. Não sei se ele não tinha me levado a
sério por deduzir que a minha incorporação ainda não era certa ou
- além der um lazarento
- tinha mesmo coragem. Digo isso porque eu tinha - como tenho até
hoje - uma razoável compleição física(mais por genética do que
por esforço). E era pelo menos uns dez centímetros mais alto que o
"milico".
O
"bicho" seguiu seu caminho, subindo as escadas que davam no
primeiro pavimento para rumo ignorado. Nesse meio tempo, dois outros
conscritos já tinham chegado, sentando-se ao me lado por indicação
do "recepcionista". Logo em seguida, fui chamado:
-
Conscrito 49! - diz o soldado da escrivaninha.
Me
levanto e vou até ele, que estende o meu CAM, dizendo:
-
Siga de acordo com as instruções no verso.
-
Obrigado. - respondo. Me afasto, lendo a informação carimbada no
verso:
"
Apresente-se no dia 8 de março de 1997 no 20° BIB às 06:00."
No
campo motivo, o espaço estava em branco. Nem precisava, era óbvio.
(Saber o resultado do psicotécnico e, se aprovado, começar a se
despedir dos finais de semana e dizer olá para as noites em claro
durante longas e tediosas vigílias dentro de guaritas exíguas.) Os
demais espaços preenchidos à caneta, conforme o padrão. Ao ver o
horário, pensei: "Diacho! Às seis da manhã de novo? Ainda não
sou recruta para ter de acordar no toque da alvorada, caramba!"
Finito.
Nada mais a fazer por aqui. Hora de"puxar o carro". Me
dirijo ao portão principal do "20" e quase me perco outra
vez. Sou solicitado pelo sentinela a apresentar o certificado na
saída. Saio para a Erasto Gaertner com o sol alto, eram onze e meia.
Pego o alimentador laranja e sigo para o Terminal do Cabral.
Instalado num banco nos fundos, minha mente começa a remoer todos os
acontecimentos da manhã. Me pergunto se realmente teria sido uma boa
ideia fazer de tudo para ser incorporado, por mais que tivesse
pensado antes que seria uma opção muito necessária, ainda que
"meia boca". Ademais porque era um acontecimento que
poderia resultar numa cadeia de outros eventos, mudando talvez todos
os rumos da minha vida. Reflito que eu tinha vindo com uma decisão
racional, que acabou se somando com a emoção, o calor do momento. A
raiva fez o que nenhuma resolução intelectual teria o poder de
fazer. Uma ponta de arrependimento se apodera do meu coração.
Começa então uma divisão dentro de mim, uma gangorra: razão
versus
emoção, fatos versus
argumentos. Pensando bem, que opções um jovem pobre, nascido de
pais pobres numa periferia tinha? Meu pai já dava há algum tempo
sinais de que já não queria - ou podia - cuidar das minhas
necessidades, sendo o assalariado mal remunerado que era, trabalhando
como zelador no shopping Mueller. Minha mãe ainda se havia com meu
irmão, que estava em época escolar. A dura realidade era que tinha
de trabalhar como costureira numa camisaria por até doze horas por
dia para completar um orçamento que garantia apenas o mínimo. Que
opções eu teria fora do Exército? Os empregos formais eram
escassos. E não se contratavam jovens em minha condição por duas
razões.
A
primeira era a exigência - descabida - de experiência. Pra se ter
uma ideia, para uma simples vaga de porteiro de prédio se pedia -
assim, na cara dura - quatro anos em função semelhante. Que chances
um rapaz recém saído do ensino médio, sem registro algum na
carteira teria? A segunda era ainda pior. Nenhum empregador em seu
juízo perfeito contrataria alguém que - se convocado - "trancaria"
a vaga de emprego por no mínimo um ano, porque a lei diz que todo
aquele que presta serviço militar tem a garantia de sua vaga ao
voltar para a vida civil na empresa onde trabalhava. O empresário,
além de não ter um empregado, teria de contratar outro durante este
tempo e depois demiti-lo - com todo o alto custo envolvido - apenas
para que o convocado reassumisse o posto de trabalho. Um sacrifício
que nenhum empreendedor faria em hipótese alguma, mesmo em tempos de
bonança.
E
a faculdade? Ah... a faculdade! Para mim, um sonho bom. Mas nada além
disso. Particular estava fora de cogitação. Federal? Estudar o dia
todo sem ter "PAItrocínio" era a garantia da inanição -
na hipótese remota de ser aprovado - numa sangrenta luta de Davi
contra Golias. Farol do saber versus
cursinho. Autodidatismo versus
professor particular. Estrutura versus
improviso. Longas horas de trabalho braçal versus
estudos em período integral. É isso.
Alguém
disse um dia "que não pode haver vitória quando a luta não é
justa." Ah, mas talvez se argumente que isto é a lamúria dos
perdedores e que tem gente que vence mesmo assim. Verdade. Eu sou a
prova viva deste raciocínio. Mas estes são festejados justamente
por ser o que são: exceções. Ninguém neste mundo congratula ou
reconhece o comum, o corriqueiro. E além do mais, como eu já disse
antes, é muito fácil criticar quem tem fome quando se está de
barriga cheia. A história sempre foi escrita pelos vencedores, e
estes sempre fizeram tudo ao seu alcance para eliminar a concorrência
da forma mais eficaz que existe; a extinção de qualquer
oportunidade. Jamais se deu vez e voz para os que foram vítimas
deste status
quo,
ao contrário dos beneficiados por ele. Pensando bem, foi melhor eu
não ter sido aprovado no último vestibular. A frustração teria
sido bem maior. Afinal, perder é bem melhor do que ganhar e não
levar.
O
ônibus chega no terminal. Meio dia. Vou conseguir chegar em casa lá
por uma e meia da tarde. Desço e me dirijo para o outro lado através
de uma galeria subterrânea para pegar o interbairros II sentido
Capão da Imbuia. As pessoas me olham em sua maioria com cara feia,
por causa das roupas sujas. Tirando a urgência por um grande prato
de arroz com feijão e "bife zoiudo", eu não estava com a
mínima pressa. Teria praticamente um mês inteiro para ficar no mais
pleno ócio, se assim desejasse. Talvez não todo este período, mas
pelo menos uns dias para recuperar-me da lesão no braço. Até lá,
daria um jeito de arranjar alguma coisa para fazer, a fim de que os
dias não passassem tão lentamente.
Até a próxima!
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