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segunda-feira, 4 de maio de 2015

Crônicas de um recruta - Parte 7

     Olá, pessoal.

     Cá estamos novamente, com mais uma parte desta estória movimentada, divertida e que ao mesmo tempo nos faz pensar. Também aguça a curiosidade e dá vontade de ler mais, não acham?

Certo, meu povo, aí vai a parte 7. Espero que gostem!



7

     O psicotécnico foi simples, mas um pouco demorado. No final, numa apostila de capa laranja eu deveria assinalar a lápis quais atividades gostaria de executar, escritas embaixo de um desenho tosco que a descrevia. Desde as mais óbvias como "luta corpo a corpo", " lidar com munições" e coisas assim, até as mais prosaicas como "cortar carne", "descascar batatas", etc. Além disso, tive de preencher numa série de formulários os mesmos dados pessoais. Pensei comigo que, como a dotação orçamentária das Forças Armadas nunca foi lá grande coisa, eles acharam uma solução simples e até mesmo óbvia para arranjar a mão de obra necessária para preencher a vastíssima papelada gerada todos os anos em virtude do processo de seleção: Os próprios conscritos. Nem preciso dizer que tive uma dificuldade razoável para preencher aquilo tudo, porque sou destro e tinha "estourado" justamente este braço na fase anterior. Sala um tanto vazia. Consegui contar por volta de uns trinta. Se estiver correto, apenas dez por cento daquele povo todo chegou até esta etapa da peneira.
     À medida que íamos terminando os testes, levantávamos a mão e o aplicador vinha até as carteiras(iguaizinhas às da escola estadual onde eu tinha estudado) e recolhia os papéis. Em seguida, uma entrevista, após o que o sujeito era mandado para o prédio da administração para pegar o seu CAM, onde deveria estar carimbado no verso a data do retorno para se inteirar do resultado do psicotécnico e, se aprovado, seguir para o próximo processo. Só estavam neste os certificados dos aprovados nos testes físicos que o "sub" tinha levado. Os 80 que o realizaram foram separados assim como o pastor separa as ovelhas dos cabritos:
À direita os reprovados; os que gozariam da "liberdade gloriosa dos filhos do Altíssimo."
À esquerda os aprovados; os destinados à danação, a "punição judicial do fogo eterno".
     Dirigi-me à administração, conforme mandado. Me apresentei ao soldado sentado numa escrivaninha com pilhas de papéis à direita da porta principal, no hall de entrada. Ele me apontou uma cadeira do lado oposto e disse-me para esperar. Uns cinco minutos se passam, quando vejo um soldado entrar. Não era um soldado qualquer. Era "o" soldado. Poderia reconhecê-lo em qualquer lugar. O porco filho-de-uma-cadela que me aplicou o trote do "campo minado". Ele era um polaco cabelo cor de fogo, tipo físico mediano e um tanto desengonçado. Quando se deu conta da minha presença, diminuiu o passo, olhando fixamente para mim. Fiz a melhor cara de "cê tá fodido" que pude, ao mesmo tempo em que discretamente batia com o punho direito fechado na palma da mão esquerda. Ele não se intimidou. Pelo contrário. Fez cara de "tenta a sorte", ao mesmo tempo que sorria com ar de deboche por constatar que sua sacanagem tinha dado certo. Não sei se ele não tinha me levado a sério por deduzir que a minha incorporação ainda não era certa ou - além der um lazarento - tinha mesmo coragem. Digo isso porque eu tinha - como tenho até hoje - uma razoável compleição física(mais por genética do que por esforço). E era pelo menos uns dez centímetros mais alto que o "milico".
     O "bicho" seguiu seu caminho, subindo as escadas que davam no primeiro pavimento para rumo ignorado. Nesse meio tempo, dois outros conscritos já tinham chegado, sentando-se ao me lado por indicação do "recepcionista". Logo em seguida, fui chamado:
     - Conscrito 49! - diz o soldado da escrivaninha.
Me levanto e vou até ele, que estende o meu CAM, dizendo:
     - Siga de acordo com as instruções no verso.
     - Obrigado. - respondo. Me afasto, lendo a informação carimbada no verso:

" Apresente-se no dia 8 de março de 1997 no 20° BIB às 06:00."

     No campo motivo, o espaço estava em branco. Nem precisava, era óbvio. (Saber o resultado do psicotécnico e, se aprovado, começar a se despedir dos finais de semana e dizer olá para as noites em claro durante longas e tediosas vigílias dentro de guaritas exíguas.) Os demais espaços preenchidos à caneta, conforme o padrão. Ao ver o horário, pensei: "Diacho! Às seis da manhã de novo? Ainda não sou recruta para ter de acordar no toque da alvorada, caramba!"
     Finito. Nada mais a fazer por aqui. Hora de"puxar o carro". Me dirijo ao portão principal do "20" e quase me perco outra vez. Sou solicitado pelo sentinela a apresentar o certificado na saída. Saio para a Erasto Gaertner com o sol alto, eram onze e meia. Pego o alimentador laranja e sigo para o Terminal do Cabral. Instalado num banco nos fundos, minha mente começa a remoer todos os acontecimentos da manhã. Me pergunto se realmente teria sido uma boa ideia fazer de tudo para ser incorporado, por mais que tivesse pensado antes que seria uma opção muito necessária, ainda que "meia boca". Ademais porque era um acontecimento que poderia resultar numa cadeia de outros eventos, mudando talvez todos os rumos da minha vida. Reflito que eu tinha vindo com uma decisão racional, que acabou se somando com a emoção, o calor do momento. A raiva fez o que nenhuma resolução intelectual teria o poder de fazer. Uma ponta de arrependimento se apodera do meu coração. Começa então uma divisão dentro de mim, uma gangorra: razão versus emoção, fatos versus argumentos. Pensando bem, que opções um jovem pobre, nascido de pais pobres numa periferia tinha? Meu pai já dava há algum tempo sinais de que já não queria - ou podia - cuidar das minhas necessidades, sendo o assalariado mal remunerado que era, trabalhando como zelador no shopping Mueller. Minha mãe ainda se havia com meu irmão, que estava em época escolar. A dura realidade era que tinha de trabalhar como costureira numa camisaria por até doze horas por dia para completar um orçamento que garantia apenas o mínimo. Que opções eu teria fora do Exército? Os empregos formais eram escassos. E não se contratavam jovens em minha condição por duas razões.
     A primeira era a exigência - descabida - de experiência. Pra se ter uma ideia, para uma simples vaga de porteiro de prédio se pedia - assim, na cara dura - quatro anos em função semelhante. Que chances um rapaz recém saído do ensino médio, sem registro algum na carteira teria? A segunda era ainda pior. Nenhum empregador em seu juízo perfeito contrataria alguém que - se convocado - "trancaria" a vaga de emprego por no mínimo um ano, porque a lei diz que todo aquele que presta serviço militar tem a garantia de sua vaga ao voltar para a vida civil na empresa onde trabalhava. O empresário, além de não ter um empregado, teria de contratar outro durante este tempo e depois demiti-lo - com todo o alto custo envolvido - apenas para que o convocado reassumisse o posto de trabalho. Um sacrifício que nenhum empreendedor faria em hipótese alguma, mesmo em tempos de bonança.
     E a faculdade? Ah... a faculdade! Para mim, um sonho bom. Mas nada além disso. Particular estava fora de cogitação. Federal? Estudar o dia todo sem ter "PAItrocínio" era a garantia da inanição - na hipótese remota de ser aprovado - numa sangrenta luta de Davi contra Golias. Farol do saber versus cursinho. Autodidatismo versus professor particular. Estrutura versus improviso. Longas horas de trabalho braçal versus estudos em período integral. É isso.
     Alguém disse um dia "que não pode haver vitória quando a luta não é justa." Ah, mas talvez se argumente que isto é a lamúria dos perdedores e que tem gente que vence mesmo assim. Verdade. Eu sou a prova viva deste raciocínio. Mas estes são festejados justamente por ser o que são: exceções. Ninguém neste mundo congratula ou reconhece o comum, o corriqueiro. E além do mais, como eu já disse antes, é muito fácil criticar quem tem fome quando se está de barriga cheia. A história sempre foi escrita pelos vencedores, e estes sempre fizeram tudo ao seu alcance para eliminar a concorrência da forma mais eficaz que existe; a extinção de qualquer oportunidade. Jamais se deu vez e voz para os que foram vítimas deste status quo, ao contrário dos beneficiados por ele. Pensando bem, foi melhor eu não ter sido aprovado no último vestibular. A frustração teria sido bem maior. Afinal, perder é bem melhor do que ganhar e não levar.
     O ônibus chega no terminal. Meio dia. Vou conseguir chegar em casa lá por uma e meia da tarde. Desço e me dirijo para o outro lado através de uma galeria subterrânea para pegar o interbairros II sentido Capão da Imbuia. As pessoas me olham em sua maioria com cara feia, por causa das roupas sujas. Tirando a urgência por um grande prato de arroz com feijão e "bife zoiudo", eu não estava com a mínima pressa. Teria praticamente um mês inteiro para ficar no mais pleno ócio, se assim desejasse. Talvez não todo este período, mas pelo menos uns dias para recuperar-me da lesão no braço. Até lá, daria um jeito de arranjar alguma coisa para fazer, a fim de que os dias não passassem tão lentamente.


Até a próxima!

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