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segunda-feira, 25 de maio de 2015

Crônicas de um recruta - parte 15

Bom dia, leitores amigos!

Depois de um final de semana em plena inatividade - do blog, é claro! - volto a publicar hoje. Como sempre, é nos finais de semana que minha mente fica mais ativa, mais criativa...ou não!
Conforme vimos até agora, as coisas estão esquentando. A pergunta é; Como o Flávio e seus três amigos vão reagir a tudo isso? Será que vão conseguir se safar dos castigos e sacanagens?



15


     Depois desta pequena primeira amostrar do que estava por vir, o sargento recomeça a discursar:
     - Certo, recrutas. Agora que todos já estão corretamente uniformizados e tiveram uma instrução ligeira sobre o significado da palavra identificação, com a devida colaboração de um de vocês...

"Se isso foi colaboração, não quero nem imaginar o que deve ser obrigatório..."

    - ...agora lhes transmitirei outras instruções fundamentais. Prestem muita atenção, porque não sou daqueles que gosta de repetir as mesmas coisas vez após vez. Muito bem, pergunto: O que está faltando para que o seu fardamento fique completo? Alguém sabe responder?
Aí um gaiato do fundo da formação levanta a mão:
     - Identificação, recruta. - responde o instrutor, olhando para o sujeito.
O cara estufa o peito e responde em voz alta:
     - Recruta Carlos, senhor!
Nisso, o sargento sai de onde estava e vai em direção a ele, conferindo se o que o recruta respondeu "batia" com o que estava na sua biriba(dou um jeito de olhar para trás discretamente):
     - Qual é mesmo a sua identificação, recruta? - responde o sargento - com a voz mais calma desse mundo - olhando o sujeito nos olhos e quase encostando o nariz na cara dele. Eita ferro...! Num relance, o Carlos olha para a sua tarja e vê que deu merda:
     - É recruta Silveira, senhor - responde ele, em voz quase inaudível.
     - NÃO OUVI, RECRUTA!

"Vai ver que é esse o motivo de os militares só se comunicarem aos gritos. São todos surdos."

     - Recruta Silveira, senhor! - responde, agora apenas uma oitava mais alto.
     - Pra frente da formação agora, grogronhento! Se você quer "piruar"(na gíria militar isso quer dizer querer aparecer, se destacar) aprenda a fazer direito, seu bosta de cobra! Andando! - urra ele. Poderia jurar que o homem estava espumando...
E lá se vai ele, de cabeça baixa e morto de vergonha, como a sua expressão deixava muito claro. Quando ao medo, nem precisava falar. Todo aquele processo que acabei de narrar - acontecido com o russinho - se repetiu, com apenas duas diferenças. A primeira é que ao invés de dez, o sargento estabeleceu vinte flexões. A segunda é que o cara era um "frouxo", já na sexta estava choramingando que nem um bebê. O que, diga-se de passagem deixou o sargento ainda mais emputecido. Aí eu me pergunto como é que esse sujeito passou na seleção. Mais tarde eu iria descobrir.
     Vinte minutos e trocentos berros depois aquela cena tétrica termina. Com muito custo, o Silveira se levanta e volta para a formação com a camiseta e a gandola molhadas de suor. Como sua cara estava toda suada não pude distinguir muito bem, mas a mim pareceu que o tipo estava chorando. O instrutor, já tenso, vocifera:
    - Se eu tiver de repetir isto com mais um só que seja, vai todo mundo pro pau. Entendido?
     - Sim, SENHOR! - respondemos em uníssono.
    - Melhor assim. Como eu dizia, está faltando algo na sua indumentária para que sejam caracterizados como militares de fato. E o que falta é o corte de cabelo. Conforme aprenderão em instruções futuras de legislação militar, sua aparência deve condizer com a imagem da corporação que representam. Assim, vocês terão a responsabilidade de zelar disciplinadamente também por este aspecto. E as Forças Armadas adotam um sistema simples e funcional: o cartão de cabelo. Cada recruta receberá um com sua ID(identificação), onde constarão quatro campos distintos para a assinatura de conferência do seu oficial de dia ou do comandante responsável. Os cortes devem ocorrer obrigatoriamente de dez em dez dias, conforme padrão militar. Há uma barbearia(note bem, barbearia, não cabeleireiro e muito menos salão de cabeleireiro) nas dependências do batalhão exclusivamente para este fim. Friso ainda que todo aquele que infringir este regulamento sofrerá punição de acordo, salvo se a justificativa preenchida em formulário for considerada válida. Sobre isso, aprenderão na sequência. Dúvidas?

"Sim senhor, tenho uma. Quando estivermos no chuveiro os oficiais também irão fiscalizar se estamos com os pelos do saco aparados?"

Depois do que aconteceu ao "piru", ninguém se atreveu a pedir a palavra. Ele retoma:
     - Muito bem. O corte de cabelo será a próxima etapa. Formem novamente duas filas iguais para seguirmos para a barbearia. Tem vinte segundos para se organizarem!
Filas formadas novamente, seguimos o sargento até que somos alinhados junto à parede do pavilhão que era o da intendência, conforme vim a saber mais tarde. Em seguida, o instrutor fala:
     - Aguardem em silêncio e em ordem absoluta a chamada para o corte. Voltarei em breve e distribuirei a cada um o seu cartão de cabelo. Não o percam sob nenhuma circunstância, ou serão punidos. Entendido?
     - Sim, senhor!
Tomo coragem e levanto a mão. O sargento pergunta:
     - Identificação?
     - Recruta Flávio, senhor!
Quando ouve isso ele vem "seco" em minha direção, talvez achando que ia "sugar" mais um. Quando vê que me identifiquei corretamente, faz uma expressão levemente perceptível de "que droga, não vou conseguir enquadrar esse aí" e me dá a palavra:

"Ahn...Saquei qual é a sua, sargentão!..."

     - Senhor, peço permissão para dobrar as mangas da gandola!
    - Negada. Aguenta o rojão, recruta. Até porque eu não estou sentindo calor nenhum. - diz ele, virando-se e indo para o prédio da administração do quartel.

"É claro que não, as suas estão dobradas!"

Sujeito "safo"! Foi a única maneira que achou para me sacanear...As duas filas de 25 se tornaram uma só. Apesar de o corte ser apenas uma passada de "máquina um" e durar mais ou menos uns cinco minutos cada, o processo ia demorar um bocado até todos estarmos "tosquiados", devido ao fato de haver apenas um barbeiro civil à disposição naquele dia.
     Como vi que o negócio ia ser mesmo lerdo, que estávamos proibidos de conversar, que a "negada" estava com medo de o barbeiro nos "dedurar" e o fato de eu estar mais ou menos no meio da "linha", acabei por mergulhar novamente em plena "vagabundagem" mental, "viajando" por locais conhecidos e outros nem tanto. Resolvo tirar o boné - ou a cobertura, no jargão milico - da cabeça e o olho com mais cuidado. Me chama a atenção o número estampado em preto num fundo quadrado branco. Era tão grande que tomava praticamente toda a parte frontal acima da pala. Reparo que é o mesmo marcado na minha ficha que tinha ficado no "almox" mais cedo. Vinte e seis. Este é o meu número de série. Pelo menos não era o 49 do período da seleção, afinal eu viraria piada no batalhão. Melhor ainda que não era o 24. Aí sim seria o inferno. Passou raspando. Me pergunto também porque um número assim deste tamanho. Provavelmente para ser visto de longe, sem que fosse necessário se acercar do "recruta zé" para ler o seu nome na biriba. Dava menos trabalho. Recoloco-o na cabeça e olho em direção à frente da fila. Fico pensando que meu último traço de "civilidade" será removido dentro de pouco menos de uma hora. Seremos todos um bando de "vermes carecas", que é muitas vezes como os "antigos" chamam os novatos. Até parece que eles não tem espelho...
     Sem que eu consiga evitar, a Kayla volta a povoar meus pensamentos. Dou-me conta que ela era a única militar que tinha visto em todas as minhas andanças pelo "20" até ali. E por falar nela, onde estaria agora? O que estaria fazendo? Em que batalhão? Outra coisa: em minha entrevista na semana passada não me lembro de nenhum sotaque que indicasse a sua origem. Bem, talvez não tenha reparado porque fiquei tão impressionado com sua beleza e seus modos que esqueci de tudo o mais. De onde será que é? Onde nasceu? Mais uma vez muitas perguntas sem resposta. Preciso arranjar uma desculpa para vê-la outra vez. Mas como? Qual vai ser a justificativa? Não faço a mínima ideia. Mas, peraí seu idiota! Qual a sua pretensão? Por quê quer arranjar um motivo para falar com ela novamente? Passar uma conversa na orelha da moça, convidá-la para sair? "Cê" tá maluco, é? Ela é uma oficial, cara! E você, o que é? No máximo o "recruta zero" que vai ter de ralar pra diabo pra chegar a soldado! Se manca, trouxa! Acorda para a realidade. Ela NUNCA vai te dar a mínima. Ter sido bem tratado não indica que aquilo tenha significado nada mais do que profissionalismo...
     Fico lá, naquele duelo de Rommel contra Montgomery no deserto africano. Emoção versus razão. Ímpeto versus cálculo. Causa perdida versus moral elevada. Meu interior ferve mais em consequência dos meus conflitos internos do que devido àquele causticante sol naquela já longínqua manhã de março de 1997.

Um abraço e até o próximo capítulo!

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