Olá, pessoal.
Hoje postarei a parte 11, em que o Flávio começa a narrar seu primeiro dia de recruta efetivo, na sua visão muito peculiar.
Quais serão suas primeiras impressões, já que se diz por aí que "a primeira impressão é a que fica?"
Bem vejamos. Com vocês, a parte 11:
11
Novamente,
nada podia fazer a não ser esperar. Pelo menos a espera seria menor
desta vez. Felizmente, consegui emprestado com um dos meus antigos
colegas do ensino médio alguns livros. Consegui ler quase todos até
a tarde de domingo. Eram de literatura infanto juvenil, cuja série
foi bastante difundida nos anos oitenta e noventa. Chamava-se série
vagalume, com centenas de títulos publicados. O que eu mais gostei
foi o "Meninos sem Pátria", do Luiz Puntel. Só me dei
conta da passagem do tempo quando escutei aquele típico e horroroso
"ô
loco, meu!"
daquele gordo escroto que meu irmão estava assistindo na nossa velha
TV preto e branco da sala.
Meus
pais não estavam em casa. Tinham ido visitar meu tio e, para variar,
tinham me deixado de babá do moleque já que ele não manifestou a
mínima vontade de acompanhá-los. Não o condeno. Afinal, era sempre
aquele troço chato de chegar, cumprimentá-los e ficar sentado em
silêncio, ouvindo aquela tediosa conversa que começava com o clima,
desenrolava-se sobre política e terminava no custo de vida e as
doenças adquiridas por meus tios e remédios comprados para
combatê-las. E o pior, às vezes este negócio tomava boa parte da
visita, que invariavelmente durava quase o dia todo. Para jovens
irrequietos como nós aquilo era uma tortura.
São
cinco e meia da manhã de segunda feira, 13 de março de 1997. Pelo
menos hoje, posso acordar um pouco mais tarde do que nas fases de
seleção. Levanto-me com muito custo, porque não consegui dormir
direito naquela noite. A ansiedade - e porque não dizer o medo -
tomaram conta de mim. Outra vez eu estava sentindo aquele frio na
barriga. Não sabia o que esperar, como deveria me comportar, nem
mesmo como seria esta parte do processo. Enfim, era um salto no
desconhecido.
Talvez
alguém de vocês pense que sentir medo nessa altura é ridículo,
porque fiz todo o possível para ser engajado pelos motivos que aqui
já foram lidos. A este eu pergunto: Quando conseguiu ser aprovado no
vestibular, não sentiu o peso da responsabilidade que viria? Quando
assinou o contrato de trabalho depois de um longo processo de
seleção, não sentiu receio de não estar à altura da tarefa e ser
dispensado após a experiência? Quando finalmente foi dar um
"catraco"
na gostosa que perseguiu durante meses - admita! - não se preocupou
em se ia dar conta do recado ou não? É isso, meu velho. Como
humanos que somos, lutamos muito para obter algo que desejamos sem
pensar muito nas responsabilidades e consequências que
inevitavelmente vem junto. Na hora do pega-prá-capá
é que nos damos conta de que o que buscamos nem sempre é o melhor
para nós. É como dizia Clint Eastwood: "cuidado
com o que deseja, moleque..."
Depois
dos procedimentos matinais, saio para a rua apressado, porque me
demorei demais. Perco o ônibus das seis e dez e fico puto. Só daqui
a quinze minutos haveria outro. Finalmente este aparece, e durante
todo o trajeto eu praguejo baixo a cada vez em que olho num relógio.
Quando
desço no ponto próximo ao portão do quartel, já são sete e
quinze. Saio literalmente correndo até lá. Quando me acerco da
guarita, o sentinela me interpela:
-
Convocado?
-
Sim. Fui designado para incorporação na semana passada. - respondo,
ofegante.
-
Seu certificado, onde está?
-
Aqui. - digo, abrindo a mochila.
Reviro-a
de todas as formas e não encontro o maldito documento. Passo para os
bolsos. Primeiro da calça, depois da jaqueta. Mais uma vez olho a
mochila, procurando freneticamente em cada zíper, em cada canto. O
sentinela já me olha com cara de impaciência e conclui:
-
Esqueceu, não é? Mas que diabo, já é o terceiro hoje! O que é
que vocês tem na cabeça? Por um acaso seria bosta?
-
Ahn.. - tento articular uma resposta, sentindo o sangue ferver.
-
Espere aqui. - interrompe, saindo em direção a uma porta no
corredor imediatamente após a guarita, ligada ao dossel de entrada.
Logo
em seguida ele sai, seguido pelo sargento de dia que, diga-se de
passagem, também estava com cara de poucos amigos. Ele se acerca de
mim e pergunta, seco:
-
Nome?
-
Flávio Santos Barbosa.
-
Data da designação?
-
Ahn... Quarta-feira passada...
-
Eu perguntei a data, cagalhão!
-
Ahn... Oito de março, oito de março! - respondo, todo enrolado.
-
Trouxe algum documento?
-
Sim... - digo, lhe estendendo imediatamente a minha cédula de
identidade civil, que tinha ficado em minhas mãos depois daquela
busca inútil.
-
Espere aqui. - diz, e volta para a porta de onde veio.
O
sentinela me indica com o braço esquerdo que devo ficar encostado na
parede próxima da porta em que o sargento tinha entrado. Nem sequer
chego até lá quando vejo o "rajado" recolocar o telefone
no gancho. Ordena a outro soldado que estava perfilado ao lado da
escrivaninha:
-
Leve este "bisonho" aí fora até o prédio da
administração. - diz, estendendo a ele a minha identidade.
O
soldado bate continência, sai da sala e dá uma trombada em mim,
porque estava olhando, não sei por que cargas d'água para a minha
identidade. O sentinela que viu isso sacode a cabeça e solta um
risinho maroto. Apesar do soldado ter trombado em mim, por alguma
razão eu é que peço desculpas. Ele nada faz. Apenas me diz:
-
Me segue, recruta.
Andamos
até o meu já conhecido prédio da administração e sou introduzido
novamente naquele hall de entrada. O soldado que me conduziu se
dirige ao que estava sentado na escrivaninha à direita da porta
principal, entregando-lhe a minha cédula:
-
Identificado. Flávio Santos Barbosa. Não trouxe o CAM.
-
Ok. - diz o outro.
O
que me conduziu até ali vira-se e vai embora. O militar na
escrivaninha se dirige a mim:
-
Aguarde enquanto checo os seus dados. - diz ele, sentando-se e
digitando meu número de identidade em um terminal de computador.
-
Certo. Identificado. Designado para incorporação em 8 de março. -
continua, depois de um momento. - Porque não trouxe o seu
certificado?
-
Não sei o que houve. Eu poderia jurar que...
-
É sempre a mesma coisa. Daqui a pouco vão alegar que o "cachorro
comeu o meu certificado..."
-
Se não quer uma resposta, por que me fez a pergunta? - respondo eu,
já nervoso por aqueles soldados rasos virem "cagar na minha
cabeça".
Ele
estaca, incrédulo com a minha ousadia. Me olha, bufa e se levanta
olhando nos meus olhos:
-
Você está a fim de arranjar confusão, recruta?
Não
respondo. Apenas sustenho o olhar em atitude de desafio. Depois de um
momento que me pareceu longo demais, ele volta a sentar-se e recomeça
a martelar o teclado. Levanta, vai até uma impressora ali perto e
volta com alguns papéis que me estende, com desprezo. Pego-os,
enquanto ele completa:
-
Estes são formulários de requisição para o "almox".
Também nestes papéis estão as suas designações imediatas, bem
como seu nome de guerra, posto e número de série que lhe foram
destinados previamente. Como não trouxe o CAM, sua identidade civil
ficará retida temporariamente. Por hora é tudo. Junte-se aos demais
daquele grupo do outro lado desta sala e aguarde novas instruções.
Olho
na direção indicada e só então percebo os outros designados que
se aglomeravam no lado esquerdo daquele hall. Eram uns cinquenta,
aproximadamente.
-
Mais uma coisa - diz ele, em tom um pouco mais baixo - a gente "se
esbarra" por aí.
Fiz
aquela mesma cara de "tenta a sorte" - que tinha me feito o
soldado polaco do trote - diante daquela ameaça velada e me dirigi
ao grupo indicado. Imediatamente reconheço os três camaradas com
quem eu tinha feito amizade na semana anterior. Fico feliz em vê-los
e a recíproca foi verdadeira, inclusive do caladão da trupe, o
Sandro. Aperto suas mãos e destravo a língua:
-
E aí, cambada! Como estão as coisas?
-
Tudo em paz, parceiro, e você? - responde o Jackson(vulgo armário)
em nome dos demais.
-
E você Vinicius? Como vaí o teu avô? - pergunto para o "husky".
-
Eu estou legal. Quanto ao velho, tá meio mal das pernas. Vive
dizendo que vai morrer logo, e fica torrando a paciência do meu pai
para levá-lo para a Rússia. Diz que quer vê-la uma vez mais antes
de bater as botas...
-
Mas ué? Ele não fugiu de lá por causa do pai e do irmão dele? -
pergunto, divertido.
-
Ah! Sabe como são os velhos. A cada hora querem uma coisa diferente.
-
Certo. E o que ele falou quando soube que você iria incorporar no
Exército?
-
Apenas me disse que eu deveria ter ido servir no Exército Russo. Que
apenas lá eu aprenderia a ser homem de verdade. Ele se esquece que
não estamos mais na "Grande Guerra Patriótica", que é
como os russos chamam a Segunda Guerra.
-
E como ele imagina que isso seria possível? - replico.
-
Eu também gostaria de saber.
Passo
para o Sandro:
-
Fale, Sandro velho. Como vai?
-
Tudo certo. - diz isto, e apenas isto.
Resolvo
não insistir, afinal sua expressão já se fechara em copas
novamente, apesar de demonstrar que estava feliz em me ver.
Nisto,
chega até nós um militar grande, imponente. Estava com o fardamento
de combate completo. Boina preta e botas extremamente lustrosas. Não
era tão jovem, pois os cabelos curtos já começavam a ficar
grisalhos. Olhos claros, puxando para o castanho, um nariz afilado,
metido em num rosto ossudo e malares salientes. Porte físico
invejável, um gigante. Devia ser mais alto que o "viking",
o capitão Kapp. Pelas insígnias nas abotoadeiras da gola, vi que
era um primeiro sargento.
-
Muito bom dia, recrutas. - diz ele, com um a voz um tanto rouca.
-
Bom dia, senhor. - respondemos. Mas não todos, porque alguns ainda
estavam distraídos.
-
Eu sou a primeiro sargento Oliveira. Formem duas filas paralelas e
sigam-me até a área do cerimonial. Lá lhes transmitirei as
primeiras instruções do dia.
As
filas foram prontamente formadas. Satisfeito, ele ordena:
-
Atenção! Marchar!
E
lá fomos nós, na primeira marcha já como "EV's"(no
jargão militar, efetivos variáveis). Ainda trajados como civis,
mas, a partir daquele momento nada mais seria como antes.
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