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terça-feira, 19 de maio de 2015

Crônicas de um recruta - parte 11

Olá, pessoal.

     Hoje postarei a parte 11, em que o Flávio começa a narrar seu primeiro dia de recruta efetivo, na sua visão muito peculiar.
     Quais serão suas primeiras impressões, já que se diz por aí que "a primeira impressão é a que fica?"
     Bem vejamos. Com vocês, a parte 11:




11

     Novamente, nada podia fazer a não ser esperar. Pelo menos a espera seria menor desta vez. Felizmente, consegui emprestado com um dos meus antigos colegas do ensino médio alguns livros. Consegui ler quase todos até a tarde de domingo. Eram de literatura infanto juvenil, cuja série foi bastante difundida nos anos oitenta e noventa. Chamava-se série vagalume, com centenas de títulos publicados. O que eu mais gostei foi o "Meninos sem Pátria", do Luiz Puntel. Só me dei conta da passagem do tempo quando escutei aquele típico e horroroso "ô loco, meu!" daquele gordo escroto que meu irmão estava assistindo na nossa velha TV preto e branco da sala.
     Meus pais não estavam em casa. Tinham ido visitar meu tio e, para variar, tinham me deixado de babá do moleque já que ele não manifestou a mínima vontade de acompanhá-los. Não o condeno. Afinal, era sempre aquele troço chato de chegar, cumprimentá-los e ficar sentado em silêncio, ouvindo aquela tediosa conversa que começava com o clima, desenrolava-se sobre política e terminava no custo de vida e as doenças adquiridas por meus tios e remédios comprados para combatê-las. E o pior, às vezes este negócio tomava boa parte da visita, que invariavelmente durava quase o dia todo. Para jovens irrequietos como nós aquilo era uma tortura.
     São cinco e meia da manhã de segunda feira, 13 de março de 1997. Pelo menos hoje, posso acordar um pouco mais tarde do que nas fases de seleção. Levanto-me com muito custo, porque não consegui dormir direito naquela noite. A ansiedade - e porque não dizer o medo - tomaram conta de mim. Outra vez eu estava sentindo aquele frio na barriga. Não sabia o que esperar, como deveria me comportar, nem mesmo como seria esta parte do processo. Enfim, era um salto no desconhecido.
Talvez alguém de vocês pense que sentir medo nessa altura é ridículo, porque fiz todo o possível para ser engajado pelos motivos que aqui já foram lidos. A este eu pergunto: Quando conseguiu ser aprovado no vestibular, não sentiu o peso da responsabilidade que viria? Quando assinou o contrato de trabalho depois de um longo processo de seleção, não sentiu receio de não estar à altura da tarefa e ser dispensado após a experiência? Quando finalmente foi dar um "catraco" na gostosa que perseguiu durante meses - admita! - não se preocupou em se ia dar conta do recado ou não? É isso, meu velho. Como humanos que somos, lutamos muito para obter algo que desejamos sem pensar muito nas responsabilidades e consequências que inevitavelmente vem junto. Na hora do pega-prá-capá é que nos damos conta de que o que buscamos nem sempre é o melhor para nós. É como dizia Clint Eastwood: "cuidado com o que deseja, moleque..."
Depois dos procedimentos matinais, saio para a rua apressado, porque me demorei demais. Perco o ônibus das seis e dez e fico puto. Só daqui a quinze minutos haveria outro. Finalmente este aparece, e durante todo o trajeto eu praguejo baixo a cada vez em que olho num relógio.
     Quando desço no ponto próximo ao portão do quartel, já são sete e quinze. Saio literalmente correndo até lá. Quando me acerco da guarita, o sentinela me interpela:
     - Convocado?
     - Sim. Fui designado para incorporação na semana passada. - respondo, ofegante.
     - Seu certificado, onde está?
     - Aqui. - digo, abrindo a mochila.
Reviro-a de todas as formas e não encontro o maldito documento. Passo para os bolsos. Primeiro da calça, depois da jaqueta. Mais uma vez olho a mochila, procurando freneticamente em cada zíper, em cada canto. O sentinela já me olha com cara de impaciência e conclui:
    - Esqueceu, não é? Mas que diabo, já é o terceiro hoje! O que é que vocês tem na cabeça? Por um acaso seria bosta?
     - Ahn.. - tento articular uma resposta, sentindo o sangue ferver.
    - Espere aqui. - interrompe, saindo em direção a uma porta no corredor imediatamente após a guarita, ligada ao dossel de entrada.
Logo em seguida ele sai, seguido pelo sargento de dia que, diga-se de passagem, também estava com cara de poucos amigos. Ele se acerca de mim e pergunta, seco:
     - Nome?
     - Flávio Santos Barbosa.
     - Data da designação?
     - Ahn... Quarta-feira passada...
     - Eu perguntei a data, cagalhão!
     - Ahn... Oito de março, oito de março! - respondo, todo enrolado.
     - Trouxe algum documento?
   - Sim... - digo, lhe estendendo imediatamente a minha cédula de identidade civil, que tinha ficado em minhas mãos depois daquela busca inútil.
     - Espere aqui. - diz, e volta para a porta de onde veio.
O sentinela me indica com o braço esquerdo que devo ficar encostado na parede próxima da porta em que o sargento tinha entrado. Nem sequer chego até lá quando vejo o "rajado" recolocar o telefone no gancho. Ordena a outro soldado que estava perfilado ao lado da escrivaninha:
     - Leve este "bisonho" aí fora até o prédio da administração. - diz, estendendo a ele a minha identidade.
O soldado bate continência, sai da sala e dá uma trombada em mim, porque estava olhando, não sei por que cargas d'água para a minha identidade. O sentinela que viu isso sacode a cabeça e solta um risinho maroto. Apesar do soldado ter trombado em mim, por alguma razão eu é que peço desculpas. Ele nada faz. Apenas me diz:
     - Me segue, recruta.
Andamos até o meu já conhecido prédio da administração e sou introduzido novamente naquele hall de entrada. O soldado que me conduziu se dirige ao que estava sentado na escrivaninha à direita da porta principal, entregando-lhe a minha cédula:
     - Identificado. Flávio Santos Barbosa. Não trouxe o CAM.
     - Ok. - diz o outro.
O que me conduziu até ali vira-se e vai embora. O militar na escrivaninha se dirige a mim:
    - Aguarde enquanto checo os seus dados. - diz ele, sentando-se e digitando meu número de identidade em um terminal de computador.
    - Certo. Identificado. Designado para incorporação em 8 de março. - continua, depois de um momento. - Porque não trouxe o seu certificado?
     - Não sei o que houve. Eu poderia jurar que...
   - É sempre a mesma coisa. Daqui a pouco vão alegar que o "cachorro comeu o meu certificado..."
    - Se não quer uma resposta, por que me fez a pergunta? - respondo eu, já nervoso por aqueles soldados rasos virem "cagar na minha cabeça".
Ele estaca, incrédulo com a minha ousadia. Me olha, bufa e se levanta olhando nos meus olhos:
     - Você está a fim de arranjar confusão, recruta?
Não respondo. Apenas sustenho o olhar em atitude de desafio. Depois de um momento que me pareceu longo demais, ele volta a sentar-se e recomeça a martelar o teclado. Levanta, vai até uma impressora ali perto e volta com alguns papéis que me estende, com desprezo. Pego-os, enquanto ele completa:
    - Estes são formulários de requisição para o "almox". Também nestes papéis estão as suas designações imediatas, bem como seu nome de guerra, posto e número de série que lhe foram destinados previamente. Como não trouxe o CAM, sua identidade civil ficará retida temporariamente. Por hora é tudo. Junte-se aos demais daquele grupo do outro lado desta sala e aguarde novas instruções.
Olho na direção indicada e só então percebo os outros designados que se aglomeravam no lado esquerdo daquele hall. Eram uns cinquenta, aproximadamente.
     - Mais uma coisa - diz ele, em tom um pouco mais baixo - a gente "se esbarra" por aí.
Fiz aquela mesma cara de "tenta a sorte" - que tinha me feito o soldado polaco do trote - diante daquela ameaça velada e me dirigi ao grupo indicado. Imediatamente reconheço os três camaradas com quem eu tinha feito amizade na semana anterior. Fico feliz em vê-los e a recíproca foi verdadeira, inclusive do caladão da trupe, o Sandro. Aperto suas mãos e destravo a língua:
     - E aí, cambada! Como estão as coisas?
    - Tudo em paz, parceiro, e você? - responde o Jackson(vulgo armário) em nome dos demais.
     - E você Vinicius? Como vaí o teu avô? - pergunto para o "husky".
     - Eu estou legal. Quanto ao velho, tá meio mal das pernas. Vive dizendo que vai morrer logo, e fica torrando a paciência do meu pai para levá-lo para a Rússia. Diz que quer vê-la uma vez mais antes de bater as botas...
     - Mas ué? Ele não fugiu de lá por causa do pai e do irmão dele? - pergunto, divertido.
     - Ah! Sabe como são os velhos. A cada hora querem uma coisa diferente.
     - Certo. E o que ele falou quando soube que você iria incorporar no Exército?
    - Apenas me disse que eu deveria ter ido servir no Exército Russo. Que apenas lá eu aprenderia a ser homem de verdade. Ele se esquece que não estamos mais na "Grande Guerra Patriótica", que é como os russos chamam a Segunda Guerra.
     - E como ele imagina que isso seria possível? - replico.
     - Eu também gostaria de saber.
Passo para o Sandro:
     - Fale, Sandro velho. Como vai?
     - Tudo certo. - diz isto, e apenas isto.
Resolvo não insistir, afinal sua expressão já se fechara em copas novamente, apesar de demonstrar que estava feliz em me ver.
     Nisto, chega até nós um militar grande, imponente. Estava com o fardamento de combate completo. Boina preta e botas extremamente lustrosas. Não era tão jovem, pois os cabelos curtos já começavam a ficar grisalhos. Olhos claros, puxando para o castanho, um nariz afilado, metido em num rosto ossudo e malares salientes. Porte físico invejável, um gigante. Devia ser mais alto que o "viking", o capitão Kapp. Pelas insígnias nas abotoadeiras da gola, vi que era um primeiro sargento.
     - Muito bom dia, recrutas. - diz ele, com um a voz um tanto rouca.
   - Bom dia, senhor. - respondemos. Mas não todos, porque alguns ainda estavam distraídos.
    - Eu sou a primeiro sargento Oliveira. Formem duas filas paralelas e sigam-me até a área do cerimonial. Lá lhes transmitirei as primeiras instruções do dia.
As filas foram prontamente formadas. Satisfeito, ele ordena:
     - Atenção! Marchar!
E lá fomos nós, na primeira marcha já como "EV's"(no jargão militar, efetivos variáveis). Ainda trajados como civis, mas, a partir daquele momento nada mais seria como antes.

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