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sexta-feira, 8 de maio de 2015

Crônicas de um recruta - parte 9

Olá, leitores!

Novamente postando! Hoje posto a parte 9, em que o Flávio, este sujeito introspectivo, reflete e se pergunta sobre coisas que nós mesmos talvez já nos tenhamos perguntado algum dia. De vez em quando a nossa mente sai da cabeça e resolve ir dar uma passeada...
Também, parece que ele viu o passarinho verde...Será???

Muito bem, com vocês, a parte 9. Divirtam-se!





9

     Não pude me conter. Odiei-me por isso. Fiz um esforço hercúleo para que as lágrimas que me afloravam aos olhos não escorressem pelo rosto. Engoli em seco várias vezes. Respirei fundo. Uma, duas, três vezes.
     Pela segunda vez, alguém havia visto em mim algo que o motivara a agir em meu favor. Nem eu sei exatamente o que tinha sido. Talvez o esforço, ou alguma outra coisa que eu não tinha percebido. Bom, no final das contas acho que tinham ido com a minha cara. Mas, nunca pude saber ao certo, porque, apesar de os critérios de seleção parecerem muito bem definidos, na realidade as coisas são um pouco mais nebulosas. Durante a minha vivência neste meio eu tinha visto outras seleções. E quanto mais as presenciava, menos lógica tinham para mim. Vi pessoas que queriam muito prestar o serviço militar serem sumariamente dispensadas, apesar de atender a todo e qualquer critério possível que se estabelecesse, enquanto outras que fugiam da incorporação como o diabo da cruz - e que se comprovaram completas nulidades - serem designadas. Muito do que vejo até hoje dentro das Forças Armadas não faz para mim o menor sentido. Dito isto, cheguei à conclusão que, se Deus escreve certo por linhas tortas, o Exército por sua vez escreve torto por linhas certas.
     A Kayla, minha doce tenente Kayla percebe o estado emocional em que me encontro. Solícita, me pergunta:
     - Flávio, vejo que não está bem. Posso ajudar? - pergunta, com um tom de voz não de uma militar, muito menos de uma profissional, mas de uma humana, de uma mulher.
     - Não, por favor! Não precisa se preocupar. Já estou bem. Foram apenas...lembranças.
     - Certo. Mas, de qualquer forma, gostaria de falar sobre isto? Ainda temos algum tempo. - diz ela, olhando em seguida para o tenente Anderson, como que lhe pedindo com o olhar que deixasse a sala. Ele entende. E se retira imediatamente.
     - Pode falar. Não se preocupe Flávio. Pode confiar em mim. - me incentiva.
     - Perdoe-me senhora...
     - Kayla. Pode me chamar de Kayla. - interrompe-me ela, suavemente.
     - Certo, senh... digo, Kayla. Mas, peço-lhe perdão. No momento, não sinto-me à vontade para tocar em assuntos que...digamos, não me fazem muito bem.
    - Está bem, diz ela. Mas, seja como for, lembre-se que poderá contar comigo. Afinal, a partir de agora você faz parte desta corporação e, portanto, poderá contar com os recursos que dela provém. - diz, num tom de voz suave, balsâmico.

"Tem certeza? Isto não vai prestar..."

     Minha veia irônica começa a voltar. É mais forte do que eu. Sem perceber, começo a sorrir. Isto chama a atenção da tenente:
     - Vejo que estas palavras lhe trouxeram alívio.
     - Sim, de fato. - menti outra vez.
Graças a Deus que ela ainda não tinha a habilidade de ler pensamentos. Se tivesse, eu já estaria a ferros numa hora dessas...
    - Muito bem, creio que por hora é tudo. Conforme está escrito no seu certificado, você deverá se apresentar aqui novamente na próxima segunda feira, às sete horas da manhã, para o início do processo de incorporação. Aqui neste prospecto estão todas as instruções de que vai precisar. - diz ela, me estendendo uma espécie de livreto.
     - Certo. Obrigado, mais uma vez senhor...digo, Kayla. - falo, levantando-me.
     - Mais uma coisa, Flávio. Quero lembrar-lhe de algo e também pedir um favor.
     - Claro. É só dizer senh...digo, enfim.
    - Estarei todas às quartas durante todo o expediente aqui no 20° BIB. Nos demais dias da semana, atendo os outros batalhões daqui de Curitiba e da Lapa. Por isto me encontrará nesta sala somente neste dia, ok?
     - Perfeito.
    - Ótimo. O favor que eu te peço é o seguinte; sempre que estivermos em particular, como agora, poderemos nos tratar informalmente. Mas, desta sala para fora terá de ser 'tenente' e 'senhora', está bem? Vamos cumprir o protocolo, certo?
     - Sim, senhora! - digo, com um leve sorriso, em um tom de voz descontraído.
    - Temos um acordo, então. Seja bem vindo ao Exército Brasileiro. - diz, levantando de sua cadeira e me estendendo a mão.
     Eu a aperto. Faço posição de sentido e bato continência, de uma forma levemente irreverente. Com este gesto, me retiro da sala, como que pisando em nuvens. Estava inebriado. Era a sensação de vitória? Talvez. Alívio? Diria que sim. O perfume e a beleza daquela mulher fantástica? Com certeza! Sua bondade e solicitude? Absolutamente!
Quando estou no corredor, paro por um momento para olhar aquele documento que passara a ser o meu troféu. Beijo-o. Sim, beijo-o ostensivamente, sem me importar com os que estão à minha volta. Desço as escadas e encontro os meus três colegas. Paro aonde estavam, mostro o carimbo no verso do meu CAM e aperto as suas mãos, desejando-lhes boa sorte, retirando-me em seguida.
     Pelo menos ao que vi até aqui, muitas das coisas que eu tinha ouvido falar a respeito dos militares não correspondia com a verdade. Nem tão ao mar, nem tanto à terra, como se diz. Já mencionei antes que muitas estórias se contam sobre o serviço militar. Com o tempo, muitas delas se comprovariam exageradas ou completamente fantasiosas. A primeira que ouvi foi sobre a férrea disciplina. Bobagem! Não importa o posto; são todos seres humanos - enfiados dentro de um uniforme - que tem os seus problemas, medos, paixões, conflitos, inimizades, preconceitos, etc. E todos estes às vezes se manifestam no dia-a-dia sem serem solicitados, na maioria das vezes de forma inconsciente e impulsiva. Outra "lorota" era a do tratamento totalmente desumano. Muito longe da verdade. Talvez assim parecesse para aquele sujeito que nunca tinha saído do ninho, cumulado de cuidados e paparicos, cheio de "não-me-toques". Vamos e venhamos: para que um cidadão convocado é treinado? Para aprender a fazer tricô e crochê? A realidade é que o que se aprende - resumido numa palavra - é sobrevivência. E dificilmente ela é aprendida quando a mamãe lhe serve chocolate quente enquanto se está estirado no sofá da sala com um cobertor assistindo a sessão da tarde. É duro? Sem sombra de dúvida. Mas é como disse Patton:

"Quanto mais você sua no treinamento, menos sangra no campo de batalha."

     E o maior dos fatos sobre o treinamento militar é que ele consiste na constante preparação para as piores condições que um ser humano é capaz de enfrentar. Enfim, nada como a vivência para estabelecer fatos, compor ideias e quebrar mitos.
Mais uma vez, me dirijo à saída do quartel. Já começo a me familiarizar com este lugar. Não preciso mais das placas indicativas para me orientar. Vou-me familiarizando com o local que vai ser o meu "chão de fábrica" por no mínimo um ano. Saio do "20" e corro para o ponto, conseguindo pegar o ônibus que estava chegando naquele momento. Como estava fora dos horários de pico, pude escolher onde me sentar. Como já é de praxe, começo a filosofar.
     Me dou conta repentinamente de que fui "promovido" esta manhã. De conscrito passo a recruta. Invertendo a frase de Neil Armstrong, este tinha sido "um grande passo para um homem e um salto minúsculo para a corporação"...
     Impossível também não pensar que eu tinha eliminado, por assim dizer, um número de "concorrentes" bem superior aos mais concorridos vestibulares da Federal, que é até hoje o curso de medicina; algo em torno de uns quarenta candidatos por vaga. Fazendo-se as contas, no caso da seleção dava mais ou menos o dobro, dada a relação conscrito / vaga. É claro que até hoje penso que no meu caso foi mais sorte que juízo, mas, dá no mesmo. Até porque - a título de comparação - em determinados concursos públicos a sorte é um fator determinante e mais comum do que se imagina, ainda mais se tratando de critérios de seleção tão injustos como o "questão errada elimina uma certa", adotado há muito tempo por certas bancas examinadoras. Eu pessoalmente acho isso ridículo e digo porque: Ora bolas, carambolas; se eu dou dois tiros num sujeito e erro um, mas o outro o acerta em cheio - por exemplo, bem na testa - eu atingi o objetivo de qualquer maneira. O tiro que eu errei não vai ressuscitar o cara, capisce? Bom, deixa pra lá. Afinal, você que está do "lado de lá do papel" lendo isto não o está fazendo para que eu discorra sobre baboseiras teóricas sobre "a sorte e suas influências improváveis", não é?
     Depois de aproximadamente uma hora e meia chego em casa. Eram por volta das dez e meia da manhã. Meu irmão estava em casa e, quando me viu descer do ônibus correu para me encontrar, abandonando os amigos dele e a partida de bolinha de gude que estavam jogando. O moleque me deu um abraço e foi logo perguntando como tinham sido as coisas:
     - Mano, me conte ligeiro! Como foi? Agora você é do quartel? - inquire, ofegante.
   - Agora é oficial, Marquinho! Fui designado esta manhã, guri!!! - exclamo eu, mais empolgado com o entusiasmo dele do que comigo mesmo.
     - Designado? O que é isso? - pergunta ele, com cara de besta.
    - Sim moleque, designado! Você já está na sétima série e não sabe o que é esta palavra, seu burro?
     - Se eu soubesse, não te perguntava, seu trouxa! - responde ele, ficando emburrado - E se não quer responder, "vá cagá no mato" então!
Comecei a sorrir por tê-lo provocado. E explico pra ele:
    - Significa que fui aceito! Que estou dentro, captou? - respondo, abraçando o ombro dele, num gesto conciliatório.
     Ele entende, olha pra mim com o sorriso mais largo que já vi na minha vida e sai em disparada para contar a novidade pros amigos dele, que tinham parado o jogo. Parece que eles também estavam esperando por notícias. Quando ele se acercou da molecada, já sabiam a resposta só pela empolgação. Fui caminhado na direção deles, já que tinham montado a "arena" onde estavam decidindo a final do "Circuito Mundial" bem na frente de casa. Fiquei observando seus rostos. Eram meia dúzia. Uns exprimiam admiração, outros, medo. Quando cheguei na frente da piazada, parei e fiz pose de "Exterminador do Futuro", olhando lentamente em volta, para cada um deles com cara de mau(só faltou dizer "I'll be back!"...). Sem dizer palavra, abri o portão e entrei no quintal, seguindo para dentro de casa pisando duro, que nem um coronel zangado. Coisa de retardado? Admito! Mas foi legal que só...

Bom pessoas, por enquanto é isso. 

Hasta la vista, baby!!

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