Olá, leitores!
Novamente postando! Hoje posto a parte 9, em que o Flávio, este sujeito introspectivo, reflete e se pergunta sobre coisas que nós mesmos talvez já nos tenhamos perguntado algum dia. De vez em quando a nossa mente sai da cabeça e resolve ir dar uma passeada...
Também, parece que ele viu o passarinho verde...Será???
Muito bem, com vocês, a parte 9. Divirtam-se!
9
Não
pude me conter. Odiei-me por isso. Fiz um esforço hercúleo para que
as lágrimas que me afloravam aos olhos não escorressem pelo rosto.
Engoli em seco várias vezes. Respirei fundo. Uma, duas, três vezes.
Pela
segunda vez, alguém havia visto em mim algo que o motivara a agir em
meu favor. Nem eu sei exatamente o que tinha sido. Talvez o esforço,
ou alguma outra coisa que eu não tinha percebido. Bom, no final das
contas acho que tinham ido com a minha cara. Mas, nunca pude saber ao
certo, porque, apesar de os critérios de seleção parecerem muito
bem definidos, na realidade as coisas são um pouco mais nebulosas.
Durante a minha vivência neste meio eu tinha visto outras seleções.
E quanto mais as presenciava, menos lógica tinham para mim. Vi
pessoas que queriam muito prestar o serviço militar serem
sumariamente dispensadas, apesar de atender a todo e qualquer
critério possível que se estabelecesse, enquanto outras que fugiam
da incorporação como o diabo da cruz - e que se comprovaram
completas nulidades - serem designadas. Muito do que vejo até hoje
dentro das Forças Armadas não faz para mim o menor sentido. Dito
isto, cheguei à conclusão que, se Deus escreve certo por linhas
tortas, o Exército por sua vez escreve torto por linhas certas.
A
Kayla, minha doce tenente Kayla percebe o estado emocional em que me
encontro. Solícita, me pergunta:
-
Flávio, vejo que não está bem. Posso ajudar? - pergunta, com um
tom de voz não de uma militar, muito menos de uma profissional, mas
de uma humana, de uma mulher.
-
Não, por favor! Não precisa se preocupar. Já estou bem. Foram
apenas...lembranças.
-
Certo. Mas, de qualquer forma, gostaria de falar sobre isto? Ainda
temos algum tempo. - diz ela, olhando em seguida para o tenente
Anderson, como que lhe pedindo com o olhar que deixasse a sala. Ele
entende. E se retira imediatamente.
- Pode falar. Não se preocupe Flávio. Pode confiar em mim. - me
incentiva.
- Perdoe-me senhora...
- Kayla. Pode me chamar de Kayla. - interrompe-me ela, suavemente.
- Certo, senh... digo, Kayla. Mas, peço-lhe perdão. No momento, não
sinto-me à vontade para tocar em assuntos que...digamos, não me
fazem muito bem.
- Está bem, diz ela. Mas, seja como for, lembre-se que poderá
contar comigo. Afinal, a partir de agora você faz parte desta
corporação e, portanto, poderá contar com os recursos que dela
provém. - diz, num tom de voz suave, balsâmico.
"Tem
certeza? Isto não vai prestar..."
Minha
veia irônica começa a voltar. É mais forte do que eu. Sem
perceber, começo a sorrir. Isto chama a atenção da tenente:
- Vejo que estas palavras lhe trouxeram alívio.
- Sim, de fato. - menti outra vez.
Graças
a Deus que ela ainda não tinha a habilidade de ler pensamentos. Se
tivesse, eu já estaria a ferros numa hora dessas...
- Muito bem, creio que por hora é tudo. Conforme está escrito no
seu certificado, você deverá se apresentar aqui novamente na
próxima segunda feira, às sete horas da manhã, para o início do
processo de incorporação. Aqui neste prospecto estão todas as
instruções de que vai precisar. - diz ela, me estendendo uma
espécie de livreto.
-
Certo. Obrigado, mais uma vez senhor...digo, Kayla. - falo,
levantando-me.
- Mais uma coisa, Flávio. Quero lembrar-lhe de algo e também pedir
um favor.
- Claro. É só dizer senh...digo, enfim.
-
Estarei todas às quartas durante todo o expediente aqui no 20° BIB.
Nos demais dias da semana, atendo os outros batalhões daqui de
Curitiba e da Lapa. Por isto me encontrará nesta sala somente neste
dia, ok?
-
Perfeito.
- Ótimo. O favor que eu te peço é o seguinte; sempre que
estivermos em particular, como agora, poderemos nos tratar
informalmente. Mas, desta sala para fora terá de ser 'tenente' e
'senhora', está bem? Vamos cumprir o protocolo, certo?
- Sim, senhora! - digo, com um leve sorriso, em um tom de voz
descontraído.
- Temos um acordo, então. Seja bem vindo ao Exército Brasileiro. -
diz, levantando de sua cadeira e me estendendo a mão.
Eu
a aperto. Faço posição de sentido e bato continência, de uma
forma levemente irreverente. Com este gesto, me retiro da sala, como
que pisando em nuvens. Estava inebriado. Era a sensação de vitória?
Talvez. Alívio? Diria que sim. O perfume e a beleza daquela mulher
fantástica? Com certeza! Sua bondade e solicitude? Absolutamente!
Quando
estou no corredor, paro por um momento para olhar aquele documento
que passara a ser o meu troféu. Beijo-o. Sim, beijo-o
ostensivamente, sem me importar com os que estão à minha volta.
Desço as escadas e encontro os meus três colegas. Paro aonde
estavam, mostro o carimbo no verso do meu CAM e aperto as suas mãos,
desejando-lhes boa sorte, retirando-me em seguida.
Pelo
menos ao que vi até aqui, muitas das coisas que eu tinha ouvido
falar a respeito dos militares não correspondia com a verdade. Nem
tão ao mar, nem tanto à terra, como se diz. Já mencionei antes que
muitas estórias se contam sobre o serviço militar. Com o tempo,
muitas delas se comprovariam exageradas ou completamente fantasiosas.
A primeira que ouvi foi sobre a férrea disciplina. Bobagem! Não
importa o posto; são todos seres humanos - enfiados dentro de um
uniforme - que tem os seus problemas, medos, paixões, conflitos,
inimizades, preconceitos, etc. E todos estes às vezes se manifestam
no dia-a-dia sem serem solicitados, na maioria das vezes de forma
inconsciente e impulsiva. Outra "lorota" era a do
tratamento totalmente desumano. Muito longe da verdade. Talvez assim
parecesse para aquele sujeito que nunca tinha saído do ninho,
cumulado de cuidados e paparicos, cheio de "não-me-toques".
Vamos e venhamos: para que um cidadão convocado é treinado? Para
aprender a fazer tricô e crochê? A realidade é que o que se
aprende - resumido numa palavra - é sobrevivência.
E dificilmente ela é aprendida quando a mamãe lhe serve chocolate
quente enquanto se está estirado no sofá da sala com um cobertor
assistindo a sessão da tarde. É duro? Sem sombra de dúvida. Mas é
como disse Patton:
"Quanto
mais você sua no treinamento, menos sangra no campo de batalha."
E
o maior dos fatos sobre o treinamento militar é que ele consiste na
constante preparação para as piores condições que um ser humano é
capaz de enfrentar. Enfim, nada como a vivência para estabelecer
fatos, compor ideias e quebrar mitos.
Mais
uma vez, me dirijo à saída do quartel. Já começo a me
familiarizar com este lugar. Não preciso mais das placas indicativas
para me orientar. Vou-me familiarizando com o local que vai ser o meu
"chão de fábrica" por no mínimo um ano. Saio do "20"
e corro para o ponto, conseguindo pegar o ônibus que estava chegando
naquele momento. Como estava fora dos horários de pico, pude
escolher onde me sentar. Como já é de praxe, começo a filosofar.
Me
dou conta repentinamente de que fui "promovido" esta manhã.
De conscrito passo a recruta. Invertendo a frase de Neil Armstrong,
este tinha sido "um
grande passo para um homem e um salto minúsculo para a
corporação"...
Impossível
também não pensar que eu tinha eliminado, por assim dizer, um
número de "concorrentes" bem superior aos mais concorridos
vestibulares da Federal, que é até hoje o curso de medicina; algo
em torno de uns quarenta candidatos por vaga. Fazendo-se as contas,
no caso da seleção dava mais ou menos o dobro, dada a relação
conscrito / vaga. É claro que até hoje penso que no meu caso foi
mais sorte que juízo, mas, dá no mesmo. Até porque - a título de
comparação - em determinados concursos públicos a sorte é um
fator determinante e mais comum do que se imagina, ainda mais se
tratando de critérios de seleção tão injustos como o "questão
errada elimina uma certa", adotado há muito tempo por certas
bancas examinadoras. Eu pessoalmente acho isso ridículo e digo
porque: Ora bolas, carambolas; se eu dou dois tiros num sujeito e
erro um, mas o outro o acerta em cheio - por exemplo, bem na testa -
eu atingi o objetivo de qualquer maneira. O tiro que eu errei não
vai ressuscitar o cara, capisce?
Bom,
deixa pra lá. Afinal, você que está do "lado de lá do papel"
lendo isto não o está fazendo para que eu discorra sobre baboseiras
teóricas sobre "a sorte e suas influências improváveis",
não é?
Depois
de aproximadamente uma hora e meia chego em casa. Eram por volta das
dez e meia da manhã. Meu irmão estava em casa e, quando me viu
descer do ônibus correu para me encontrar, abandonando os amigos
dele e a partida de bolinha de gude que estavam jogando. O moleque me
deu um abraço e foi logo perguntando como tinham sido as coisas:
- Mano, me conte ligeiro! Como foi? Agora você é do quartel? -
inquire, ofegante.
- Agora é oficial, Marquinho! Fui designado esta manhã, guri!!! -
exclamo eu, mais empolgado com o entusiasmo dele do que comigo mesmo.
- Designado? O que é isso? - pergunta ele, com cara de besta.
- Sim moleque, designado! Você já está na sétima série e não
sabe o que é esta palavra, seu burro?
- Se eu soubesse, não te perguntava, seu trouxa! - responde ele,
ficando emburrado - E se não quer responder, "vá
cagá no mato"
então!
Comecei
a sorrir por tê-lo provocado. E explico pra ele:
- Significa que fui aceito! Que estou dentro, captou? - respondo,
abraçando o ombro dele, num gesto conciliatório.
Ele
entende, olha pra mim com o sorriso mais largo que já vi na minha
vida e sai em disparada para contar a novidade pros amigos dele, que
tinham parado o jogo. Parece que eles também estavam esperando por
notícias. Quando ele se acercou da molecada, já sabiam a resposta
só pela empolgação. Fui caminhado na direção deles, já que
tinham montado a "arena" onde estavam decidindo a final do
"Circuito Mundial" bem na frente de casa. Fiquei observando
seus rostos. Eram meia dúzia. Uns exprimiam admiração, outros,
medo. Quando cheguei na frente da piazada, parei e fiz pose de
"Exterminador do Futuro", olhando lentamente em volta, para
cada um deles com cara de mau(só faltou dizer "I'll
be back!"...).
Sem dizer palavra, abri o portão e entrei no quintal, seguindo para
dentro de casa pisando duro, que nem um coronel zangado. Coisa de
retardado? Admito! Mas foi legal que só...
Bom pessoas, por enquanto é isso.
Hasta la vista, baby!!
Bom pessoas, por enquanto é isso.
Hasta la vista, baby!!
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