expr:class='"loading" + data:blog.mobileClass'>

segunda-feira, 5 de dezembro de 2016

Crônicas de um recruta - Parte 43

     Bom dia, boa tarde, boa noite nobres e fiéis leitores deste humilde escriba!

     Hoje publico mais um capítulo dessa saga, que se avoluma e se diversifica, para o nosso deleite. Conforme vimos no post anterior, nosso recruta favorito resolve sair para esfriara cabeça. O que acontece a seguir?
     Vejamos...


43

      Apago em pouco tempo ali mesmo porque fui dormir muito tarde na noite anterior. Desperto assustado ao sentir alguns cutucões nas costelas. Levanto o tronco apoiando-me com as duas mãos, para só então reconhecer os dois sujeitos que ali estão a me incomodar. São o Maycon e o Danilo, colegas da minha turma do último ano do Ginásio:
      - Olha só o “que” a gente achou jogado por aqui! Dá uma olhada, Maycon. Eu quase não reconheci o indigente! – Troça o Danilo.
Entrando na onda, o Maycon dá um longo assovio, replicando;
      - Meu, olha só que estrago! Eu já tinha ouvido falar do que acontece quando se entra no exército, mas só vendo mesmo pra acreditar!
Retruco, enquanto me apoio na mão estendida do Danilo para me levantar:
     - Bem se vê que as notícias correm rápido entre a veadagem. Como vai o casal de ouro da escola?
     - Muito bem! Obrigado por perguntar. Mas, sabe de uma coisa? Não passe vontade! Faça como nós; venha para o lado rosa da força! – responde o Maycon.
Caímos os três na gargalhada.
Os dois eram vizinhos onde moravam no conjunto Mercúrio, perto da escola em que estudei nos meus anos de Ginásio e do hoje chamado Ensino Médio. Sendo os dois filhos únicos em suas famílias e com diferença de idade inferior a um ano, tornaram-se como irmãos. Estudaram juntos em praticamente todo o primeiro grau, quase sempre na mesma turma. Aprontavam juntos, brigavam juntos, estudavam juntos, enfim, eram um retrato fiel daquela expressão inglesa;

A brother from another mother.”

      É lógico que esta amizade suscitava muita inveja. Daí os boatos que surgiram de uma suposta baitolagem dos caras, amplamente desmentidos pela série de namoradinhas que tiveram desde o primário. Mesmo assim, o troço pegou. E eles não se fizeram de rogados. Aceitaram na boa a zoeira. Não passaram recibo.
Ficamos de papo furado ali mesmo por alguns minutos, até que o Maycon propôs que fôssemos tomar qualquer coisa gelada no boteco na rua bem em frente ao parque. Resolvi topar. Precisava esquecer um pouco dos meus problemas. Dirijo-me até lá empurrando a “magrela” e caminhando ao lado do Danilo, enquanto o Maycon foi buscar o carro que estava estacionado nas redondezas.
     Escolhemos uma mesa ao lado da mureta onde se apoiavam as pilastras da cobertura externa para “cuidar do movimento e daquele trambolho indignamente chamado de bicicleta. Pedimos algumas garrafas de Antárctica e pusemo-nos a atualizar a conversa. Como sempre, fui crivado de perguntas de todos os tipos. A primeira hora de papo consumiu-se apenas em matar a curiosidade deles. Galhofas à parte, todas as perguntas eram feitas com respeito. Os caras deixavam transparecer uma espécie de reverência, que ia se tornando mais evidente à medida que o álcool fazia o seu trabalho. Não lhes escondi absolutamente nada. Nada mesmo. Nem da Kayla, nem da Salete, nada. Por instantes entreolhavam-se, duplamente incrédulos. Mas, como nunca lhes tinha contado lorota antes, deram-me um voto de confiança. Continuavam incrédulos, mas agora com a situação incomum em que me encontrava.
      - Rabudo do caralho! – exclamou o Maycon – Vá ter essa sorte assim lá na puta que o pariu!
      - Amém. – Completa o Danilo.
      - É, mas o pior vem agora. Primeiro; já lhes expliquei, porra, que apenas estou desconfiado do lance da Kayla. Pode ser, como pode não ser. O troço é incerto. Segundo; perdi a porcaria do telefone da Salete.
Sonoro apupo alcoólico:
      - AHHHHHHH! Mas puta que o pariu cara, como tu é burro! – retrucam os dois, em uníssono.
     - Eu sabia que vocês iam dizer isso. Sejam mais originais, cacete! Já disse, não tenho certeza! E além do mais, o que vocês queriam? Que eu comesse ela bem ali?
      - Véio, eu já “arrastei” muitas minas do cursinho por muito menos que isso! O que você tá esperando? Que ela coloque uma faixa na frente do quartel escrito assim: “Flávio, me coma por favor. Com amor: Kayla”? Elá tá na tua, mermão!! Qual a dúvida que tu ainda tem? Cara, vê se enfia isso nesse teu coco raspado: Quando a mulher tá a fim, ela NUNCA, absolutamente NUNCA se declara. Só dão indiretas, se insinuam, ficam se fazendo, saca? Ela tá seguindo o script direitinho. E mais; criou situações para poder fazer isso! Meu Deus do céu! Ah, se fosse comigo! – exclama o Maycon
      - É cara! Tá bom, tá bom. Menos, meu conselheiro fodal! Só que tem um detalhe a mais do qual tu se esquece. A Salete.
     - Essa aí é peixe na rede. Nem conta. - diz o Danilo.
      - Não é isso o que eu quis dizer. O que eu entendo disso tudo é seguinte: A Salete é de fato uma opção mais viável. Mas acontece que vocês não tão se ligando na real. Eu estou ferrado. Sem grana. Sou pobre, quebrado. Quando for levar uma delas pra sair, vou levar aonde? No dogão da esquina? Em quê? Na garupa da magrela? Pra vocês é fácil falar. Dá uma olhada na máquina que você tá dirigindo, Maycon! E quanto a você, Danilo? Na pior das hipóteses pode pegar emprestado o carro do teu pai quando quiser sair pra “passar o rodo”.
Eles silenciam e se olham. Percebem que estou parcialmente certo. Depois de um pequeno intervalo, o Maycon passa a mão no queixo – gesto muito dele, aliás – e diz, olhando fixamente pra mim;
      - Sabe de uma coisa, Flávio? Você tá só meio certo. Vou te contar uma coisa que meu pai me disse quando tive esse mesmo dilema existencial. – Diz, sorrindo ironicamente.
E prossegue:
      - Seguinte; “A mulher que agora tem, que veio pelo que se tem não te pertence. Por outro lado, a mulher que a você veio por quem você é, esta é a que te possui”. Moral da história, meu chapa; Se ela gosta de você de verdade, vai contigo a pé até pro inferno.
      - Lindo, Maycon. Muito poético, eu diria. Aplausos de pé pra você, quero dizer, pro seu pai. Acontece que tenho uma perguntinha, cumpádi. Só uma: Por quê então você usa o que tem pra conseguir as meninas que quer, e despreza o sensato conselho paterno?
Ele me olha, sardônico, e me diz com a maior calma do mundo;
      - Por pura diversão. O que eu tenho, que nem você diz, é só um meio para um fim. É como o joystick de um vídeo game. Amor verdadeiro? Tô muito novo pra pensar nisso. Meu pai sempre diz que tenho de me concentrar só em duas coisas: ser bem-sucedido nos estudos e curtir a juventude, porque só se vive uma vez. É claro que o velho sempre me diz pra ser cuidadoso, responsável e blablablá, blablablá. Mas que eu não me furte de viver a vida, porque depois é só responsabilidade e correria. Aí, quando estiver formado e bem empregado, - talvez como funcionário do governo, que nem o meu velho – aí sim vou pensar nesse lance de mulher pra casar.
E tasca um golaço de cerveja na goela, no que é imitado pelo Danilo que me olha, divertido, por notar a minha expressão de perplexidade.
      Fico sem palavras. Não sei o que dizer. Nunca tinha olhado as coisas por esse lado. Não a parte do machismo explícito na filosofia dos meus amigos playboys, muito menos no seu raciocínio implícito “enquanto não acho a mulher certa me divirto com as erradas”. O que “pegou” foram as premissas “sou muito novo para pensar nesse tal de amor verdadeiro” e, principalmente, “ser bem-sucedido nos estudos”. O Danilo me olha outra vez e diz:
      - Pelo jeito este tijolo te acertou a caixola em cheio, né? Pra mim também foi assim no começo. Depois, ficou claro como água.
     - Eu confesso; nunca tinha pensado assim antes. Acho que vou tomar isso em consideração...
      - Meu velho é mesmo um sábio. - diz o Maycon.
Seguimos papeando. Agora eles é que me contam sobre suas vidas. Os dois passaram no último vestibular. Isso mesmo. Aquele em que eu rodei. São calouros de Engenharia na Federal. Um na Civil, outro na Mecânica. Pergunto a eles porque não estão carecas que nem eu, já que todo calouro é zoado no trote. Disseram-me que nunca distribuíram tanta pancada na vida como naquele dia e que por isso “escaparam”. Fico só imaginando como foi...
    Perguntei também como escaparam do serviço militar e os dois disseram que entraram no excesso de contingente, nem sequer tendo de passar pela cerimônia de jurar à bandeira. Excesso de contingente... Sei... Tratamos de vários outros assuntos, matamos saudades da infância e do começo da adolescência. Algumas confissões sobre cagadas acontecidas e meninas bolinadas foram feitas, agora que já eram definitivamente coisas do passado.
      As horas escoaram rapidamente. Lá pelas cinco, digo aos amigos que preciso ir. Já bebemos uma quantia razoável e também está ficando bem frio. Quero ir logo pra casa, antes que anoiteça. Eles estão vestidos como eu, de bermuda, tênis e camiseta. Só que estão de carro, eu não. Proponho rachar a conta mas eles se recusam, dizendo que desta vez vão levar em consideração que salário de milico é uma merreca. E arrematam que eu vá juntando uma grana, que na próxima quem vai pagar sou eu. Aceito. Assim, a muito custo consigo sair de lá, depois de mais umas cinco “saideiras”.
      Estou um pouco “alto”. Nunca tinha bebido assim. Pra falar a verdade, foi a primeira vez na vida que bebi com amigos. E admito que foi bem legal. “Bem-vindo à maioridade”, pensei cá com meus botões. É claro que não tinha naquele momento muito o que “bebemorar”, mas valeu a pena pelas coisas que vi e ouvi. Teria muito em que ponderar nos próximos dias. Só estava preocupado com uma coisa; Quando meus pais me virem nesse estado, vão encher o saco de verdade. Vai ser uma desgraceira só. Será mesmo? Meus velhos nunca ligaram muito pro que eu e meu irmão fizemos ou deixamos de fazer. Acho que não vai dar nada! Ou vai? Bom isso é diferente... Nunca nós ficamo bebum antes... Oh merda! Vô apanhá até por dentro dos olho...
      Não havia pedalado nem por duas quadras quando a rua começou a dançar diante dos meus olhos. Por reflexo, aciono o freio de pé. Quando dou por mim, estou estendido de bruços em todo o meu comprimento dentro de uma valeta – por sorte seca – com a bicicleta por cima. Não me perguntem como exatamente fui parar lá porque até hoje não sei. Só me lembro de vociferar ameaças contra aquele filho da puta do polaco “soldado antigo” que pela segunda vez tinha me passado a perna...
      Maquinalmente me levanto, com bicicleta nas costas e tudo, ajeito-a e sigo meu caminho, sob uma torrente de risadas e apupos da molecada da rua. Sigo bem mais devagar e cautelosamente. Quando chego no portão de casa, lembro-me de sentir um alívio enorme ao constatar que não havia ninguém. Que puta sorte!

Nenhum comentário:

Postar um comentário