Bom dia, boa tarde, boa noite, leitores!
Faz tempo que não escrevo por aqui. Muitas coisas aconteceram neste e no ano passado. Mas, enfim, estamos de volta. Vou terminar estas crônicas-livro nem que demore dez anos!!!
Bom, com vocês a parte 44. Apreciem!
44
Encosto
a magrela nos fundos de casa e corro para o banheiro. Bom,
eu não diria correr porque é cientificamente impossível uma
criatura desenhada para ser bípede atingir velocidade para
tanto
deslocando-se em
quatro patas. Dentro
do box esforço-me vigorosamente para ficar em pé. Ligo o chuveiro e
me enfio embaixo com roupa e tudo. O mundo gira loucamente. Meu pobre
estômago não resiste a todas estas voltas e vomito ruidosamente.
Tiro a roupa da melhor forma que consigo e lavo-a. Não me lembro
quanto tempo fiquei ali. Só me recordo que saí completamente nu até
o tanque e coloquei a roupa numa boca onde ainda estavam algumas
peças de
molho.
O banho me ajuda a melhorar do porre pelo menos um pouquinho.
Visto-me
no
instinto
e vou para a cama. Quando
fecho os olhos é que percebo que o pior mesmo estava por vir. Tudo
gira e oscila com tanta força que parece que estou no interior de um
U-boat no Mar do Norte. Não
consigo pegar no sono, justo ele que seria meu bote salva-vidas.
Nesse
meio tempo, escuto ruídos no portão. É a família que está
chegando. Penso que agora mais do que nunca preciso fingir que estou
dormindo. Se descobrirem o meu estado a coisa vai ficar feia de
verdade. A turma entra em casa acendendo todas as luzes, falando alto
e animadamente. Estranho, afinal
desde
a demissão do meu velho o clima andava bem pesado.
Chamam-me.
Não respondo. Insistem. Nada de reagir, cubro
a cabeça com os cobertores.
Estou rangendo os dentes de medo. Por fim, o Marquinho abre a porta
abruptamente, inundando-me de luz som. Som? Melhor dizer ruído:
-
Fláviôô!! Fláviôôôô!!!!! - berra.
Respondo,
com a voz pastosa:
-
O quê cê quer, cacete! Deixa eu dormir!!
-
Ah! Vai à merda então, seu chato dos infernos! - retruca ele,
batendo a porta com estrondo.
Continuo
escutando uma algazarra difusa por bastante tempo. Não sei se por
causa do sono provocado
pelo álcool
ou apenas pelo mal estar horroroso, não
conseguia distinguir uma só palavra que fosse. Começo a variar,
dormitando enquanto o mundo resolve inverter
sua rotação só para me sacanear. O
estômago não aguenta a parada e vira pelo avesso outra vez. Tenho
tempo apenas de instintivamente virar a cabeça pro lado para deixar
o material sair, melecando o chão do quarto. Depois
disso, a única coisa de que consigo me lembrar é de ouvir à
distância o estrondo da porta novamente e
de ser soterrado por uma avalanche de luz.
Ouço gritos difusos, sem conseguir identificar a voz. Depois, sinto
uma série de pinicadas, como se mil abelhas estivessem
picando-me. Em seguida, escuridão absoluta.
Acordo.
Abro dolorosamente os olhos. Está tudo escuro. Sinto fortes pontadas
na cabeça, como se mil macacos a estivessem
espetando com garfos. A percepção sensorial vai retornando aos
poucos, como se o cérebro estivesse tão desorganizado que não
conseguisse
acionar
mais do que um sentido
por vez. O primeiro a voltar é o olfato. Cheiro
forte e nauseabundo de uma mistura de pinho sol com vômito. Nossa!
Ótimo despertar!
Os
ouvidos zumbem ao tentar apurar a audição, tentando distinguir o
que se passa à minha volta. Escuto apenas latidos dos
cães da vizinhança, um
galo cantar
ao
longe
e um ou outro som indistinto da madrugada. Aos poucos a visão vai se
acomodando e, quando olho para o lado da cama do Marquinho vejo que
ele, seu colchão, o cobertor e o restante das roupas de cama
sumiram. Na
certa não
dormiu aqui por causa deste futum horroroso. Garoto esperto. Levou
suas tralhas para a sala ou para o quarto dos velhos.
Faço
menção de mexer-me e o arrependimento é imediato. Fortes dores
percorrem
praticamente todo o meu corpo.
“Carambola!
Pensei que o álcool matasse aos poucos, não de uma vez só!”
Nunca
tinha tido um porre antes e
portanto
não
sabia que um
desses
faria
doer
até
a raiz dos cabelos. Mesmo assim, sinto a necessidade imperiosa de
ir ao banheiro. Vou ter de me obrigar a levantar. Descubro-me
aos poucos. Levantar já é uma outra história. Demoro bastante para
chegar lá mas consigo, ainda
que aos trambolhões.
A cabeça pesa como chumbo. Tanto que me obrigo a sentar no vaso,
mijando
como uma garota. Resolvo
olhar no espelho a fim de
investigar por experiência própria a
cara que fica um sujeito de ressaca. Foi só
aí
que -
de tão desnorteado estava - vi
marcas fundas e
arroxeadas
de cinta com fivela e tudo na
região da clavícula, no tórax desnudo, costelas, braços e
barriga.
O olho esquerdo estava semicerrado
e havia um filete de sangue seco no canto esquerdo da boca.
Instintivamente
levo a mão até ali. Está inchado também. Passo a língua pelos
dentes e constato dolorosamente
que o primeiro molar inferior esquerdo estava meio mole. Cuspo
mais um pouco de sangue na pia, enxaguando a boca em seguida.
Apalpo-me dos pés à cabeça, e a cada contusão percebida cresce
a
revolta
dentro do meu coração juvenil. Uma
raiva nunca antes sentida apodera-se
de
mim. Tão forte que a alma junta-se ao sofrer do corpo. Lágrimas
amargas correm pelo rosto e a cada soluço grito
em silêncio, afogado pelos sentimentos de mágoa e impotência. Fico
ali um bom tempo tentando compreender tamanha ignorância. Por
quê?
Foi
aí que me vieram
à memória os relatos dos velhos sobre as devastadoras e humilhantes
surras que levaram na infância e juventude por motivos banais,
segundo eles. Com essa lembrança, meu sangue ferveu ainda mais
porque julguei esta atitude do meu pai – ou da minha mãe, sei lá
– imperdoável. Imperdoável por que na minha concepção aquele
que sofre na pele uma injustiça destas
jamais
quereria
que
alguém que supostamente lhe é querido(ou mesmo seu próximo) passe
pelo mesmo sofrimento.
Então
algo estranho aconteceu. Alguma coisa dentro de mim se quebrou.
Gradualmente a tristeza foi morrendo enquanto eu aspirava grandes
lufadas de
ar. No lugar dela, a mente começou a trabalhar numa ideia impelida
pelo bloco monolítico de determinação que havia se formado
anteriormente no meu eu, e
que agora inequivocamente controlava-me.
Após
alguns minutos de reflexão, bato
o martelo.
Lavo
o rosto, escovo delicadamente
os
dentes e saio capengando do banheiro em direção à sala, acendendo
a luz.
O Marquinho não está lá, portanto está no quarto dos crápulas.
Menos
mal.
Olho
no relógio da parede. São 05:26 da manhã. Ainda está escuro. Vou
para o quarto e me visto para sair. Abro as portas da parte do
guarda-roupa que me cabe, pego as mochilas do quartel e a antiga da
escola. Coloco nelas meus pertences mais importantes, minhas melhores
roupas,
fardamento, coturno, bem
como o único par de tênis que tinha e um de
chinelos.
Vou ao meu cofre de lata retirar todas as minhas economias. Conto o
dinheiro: duzentos e quarenta e três reais e
sessenta centavos.
Uma boa grana para um adolescente da periferia, se considerar que o
salário mínimo daquela época era o equivalente
a cento e vinte reais. Guardo
a maioria dentro de uma das meias, deixando uns trocados na minha
velha carteira de napa. Em seguida, coloco todas as minhas tralhas
silenciosamente no sofá da sala, voltando
para a cozinha com caneta e uma folha de caderno
nas mãos. Coloco-a
em cima de mesa e
escrevo
em letras garrafais uma única palavra: “covardes”. Em seguida,
apago as luzes e sento-me no sofá aguardando o dia clarear, o que
não demora muito a acontecer. Abro cuidadosamente primeiro a janela,
depois a porta da frente. Em seguida, pego minhas coisas devagar –
por causa das dores – e
saio,
tranco-a e jogo a chave pela janela, fechando-a discretamente por
fora. Dou uma última olhada em volta e saio para a rua em direção
ao ponto de ônibus.
É
uma gélida
manhã de domingo. Felizmente não tive de esperar mais do que 15
minutos até um alimentador aparecer. Sou o único passageiro, posso
sentar-me aonde quiser. O ônibus passa em frente de casa e isto me
permite uma última vista. E digo última porque não pretendo
aparecer aqui tão cedo. Pelo menos não
para
morar. Nunca mais. Se for digno de mim mesmo hei de me virar sozinho,
abandonar esta mediocridade
e vencer na vida. Não serei um derrotado que desconta suas
frustrações nos filhos usando travessuras da juventude como válvula
de escape.
Sei
que pode parecer a vocês uma revolta sem causa, um aforismo
passageiro. Mas sinto informar-lhes que não é. Na
realidade esta foi a gota d’água. Muitas
outras destas aconteceram no passado, mesmo nas menores faltas. Como
sempre lhes disse desde o começo deste relato, meus pais pouco se
lixavam para nós, especialmente para mim. Já
que sempre fui considerado um fardo para eles, o melhor mesmo é cair
fora. Pra
falar a verdade, há tempos eu já amadurecia esta ideia. Só não a
tinha
executado
até agora porque não possuía
um
meio
de subsistência. E de mais a mais, tudo nessa vida tem data de
validade. E o meu prazo de morar com os pais definitivamente tinha
acabado.
Confesso
que tive medo. Ao olhar a casa - que um dia eu julgara ser também
minha - passando pela última vez diante dos meus olhos, metade de
mim pensou no que seria o futuro. De que talvez fosse loucura sair
assim sem rumo, sem um bom plano. Já a outra metade, movida pelo
rancor acumulado durante todos aqueles anos e a gana de vencer me
dizia para não dar uma de “mulher de Ló”.
“Não
se vive de passado. Olhe sempre à frente e não sucumba diante do
medo de sentir a dor que a luta costuma trazer. Você é forte,
jovem, inteligente e perseverante. Vai conseguir”…
Estava
tão absorto em meus problemas que levei um susto quando o cobrador
me avisou que se quisesse descer, tinha de ser agora porque já era
hora de saírem do terminal para dar outra volta no itinerário.
Levanto-me tropegamente com minha carga,
faço um sinal de positivo e desço. Vou à procura de um banco
qualquer porque preciso de duas coisas; respirar um pouco de ar
fresco até que a náusea desta maldita ressaca se aquiete e
organizar um pouco as ideias, decidindo que rumo tomar.
Nenhum comentário:
Postar um comentário