expr:class='"loading" + data:blog.mobileClass'>

segunda-feira, 18 de dezembro de 2017

Crônicas de um recruta - Parte 44

     Bom dia, boa tarde, boa noite, leitores!

Faz tempo que não escrevo por aqui. Muitas coisas aconteceram neste e no ano passado. Mas, enfim, estamos de volta. Vou terminar estas crônicas-livro nem que demore dez anos!!! 

Bom, com vocês a parte 44. Apreciem!


44

     Encosto a magrela nos fundos de casa e corro para o banheiro. Bom, eu não diria correr porque é cientificamente impossível uma criatura desenhada para ser bípede atingir velocidade para tanto deslocando-se em quatro patas. Dentro do box esforço-me vigorosamente para ficar em pé. Ligo o chuveiro e me enfio embaixo com roupa e tudo. O mundo gira loucamente. Meu pobre estômago não resiste a todas estas voltas e vomito ruidosamente. Tiro a roupa da melhor forma que consigo e lavo-a. Não me lembro quanto tempo fiquei ali. Só me recordo que saí completamente nu até o tanque e coloquei a roupa numa boca onde ainda estavam algumas peças de molho. O banho me ajuda a melhorar do porre pelo menos um pouquinho.
     Visto-me no instinto e vou para a cama. Quando fecho os olhos é que percebo que o pior mesmo estava por vir. Tudo gira e oscila com tanta força que parece que estou no interior de um U-boat no Mar do Norte. Não consigo pegar no sono, justo ele que seria meu bote salva-vidas. Nesse meio tempo, escuto ruídos no portão. É a família que está chegando. Penso que agora mais do que nunca preciso fingir que estou dormindo. Se descobrirem o meu estado a coisa vai ficar feia de verdade. A turma entra em casa acendendo todas as luzes, falando alto e animadamente. Estranho, afinal desde a demissão do meu velho o clima andava bem pesado.
    Chamam-me. Não respondo. Insistem. Nada de reagir, cubro a cabeça com os cobertores. Estou rangendo os dentes de medo. Por fim, o Marquinho abre a porta abruptamente, inundando-me de luz som. Som? Melhor dizer ruído:
     - Fláviôô!! Fláviôôôô!!!!! - berra.
Respondo, com a voz pastosa:
     - O quê cê quer, cacete! Deixa eu dormir!!
    - Ah! Vai à merda então, seu chato dos infernos! - retruca ele, batendo a porta com estrondo.
     Continuo escutando uma algazarra difusa por bastante tempo. Não sei se por causa do sono provocado pelo álcool ou apenas pelo mal estar horroroso, não conseguia distinguir uma só palavra que fosse. Começo a variar, dormitando enquanto o mundo resolve inverter sua rotação só para me sacanear. O estômago não aguenta a parada e vira pelo avesso outra vez. Tenho tempo apenas de instintivamente virar a cabeça pro lado para deixar o material sair, melecando o chão do quarto. Depois disso, a única coisa de que consigo me lembrar é de ouvir à distância o estrondo da porta novamente e de ser soterrado por uma avalanche de luz. Ouço gritos difusos, sem conseguir identificar a voz. Depois, sinto uma série de pinicadas, como se mil abelhas estivessem picando-me. Em seguida, escuridão absoluta.
    Acordo. Abro dolorosamente os olhos. Está tudo escuro. Sinto fortes pontadas na cabeça, como se mil macacos a estivessem espetando com garfos. A percepção sensorial vai retornando aos poucos, como se o cérebro estivesse tão desorganizado que não conseguisse acionar mais do que um sentido por vez. O primeiro a voltar é o olfato. Cheiro forte e nauseabundo de uma mistura de pinho sol com vômito. Nossa! Ótimo despertar!
Os ouvidos zumbem ao tentar apurar a audição, tentando distinguir o que se passa à minha volta. Escuto apenas latidos dos cães da vizinhança, um galo cantar ao longe e um ou outro som indistinto da madrugada. Aos poucos a visão vai se acomodando e, quando olho para o lado da cama do Marquinho vejo que ele, seu colchão, o cobertor e o restante das roupas de cama sumiram. Na certa não dormiu aqui por causa deste futum horroroso. Garoto esperto. Levou suas tralhas para a sala ou para o quarto dos velhos.
Faço menção de mexer-me e o arrependimento é imediato. Fortes dores percorrem praticamente todo o meu corpo.

“Carambola! Pensei que o álcool matasse aos poucos, não de uma vez só!”

     Nunca tinha tido um porre antes e portanto não sabia que um desses faria doer até a raiz dos cabelos. Mesmo assim, sinto a necessidade imperiosa de ir ao banheiro. Vou ter de me obrigar a levantar. Descubro-me aos poucos. Levantar já é uma outra história. Demoro bastante para chegar lá mas consigo, ainda que aos trambolhões. A cabeça pesa como chumbo. Tanto que me obrigo a sentar no vaso, mijando como uma garota. Resolvo olhar no espelho a fim de investigar por experiência própria a cara que fica um sujeito de ressaca. Foi aí que - de tão desnorteado estava - vi marcas fundas e arroxeadas de cinta com fivela e tudo na região da clavícula, no tórax desnudo, costelas, braços e barriga. O olho esquerdo estava semicerrado e havia um filete de sangue seco no canto esquerdo da boca. Instintivamente levo a mão até ali. Está inchado também. Passo a língua pelos dentes e constato dolorosamente que o primeiro molar inferior esquerdo estava meio mole. Cuspo mais um pouco de sangue na pia, enxaguando a boca em seguida. Apalpo-me dos pés à cabeça, e a cada contusão percebida cresce a revolta dentro do meu coração juvenil. Uma raiva nunca antes sentida apodera-se de mim. Tão forte que a alma junta-se ao sofrer do corpo. Lágrimas amargas correm pelo rosto e a cada soluço grito em silêncio, afogado pelos sentimentos de mágoa e impotência. Fico ali um bom tempo tentando compreender tamanha ignorância. Por quê?
    Foi aí que me vieram à memória os relatos dos velhos sobre as devastadoras e humilhantes surras que levaram na infância e juventude por motivos banais, segundo eles. Com essa lembrança, meu sangue ferveu ainda mais porque julguei esta atitude do meu pai – ou da minha mãe, sei lá – imperdoável. Imperdoável por que na minha concepção aquele que sofre na pele uma injustiça destas jamais quereria que alguém que supostamente lhe é querido(ou mesmo seu próximo) passe pelo mesmo sofrimento.
Então algo estranho aconteceu. Alguma coisa dentro de mim se quebrou. Gradualmente a tristeza foi morrendo enquanto eu aspirava grandes lufadas de ar. No lugar dela, a mente começou a trabalhar numa ideia impelida pelo bloco monolítico de determinação que havia se formado anteriormente no meu eu, e que agora inequivocamente controlava-me. Após alguns minutos de reflexão, bato o martelo.
     Lavo o rosto, escovo delicadamente os dentes e saio capengando do banheiro em direção à sala, acendendo a luz. O Marquinho não está lá, portanto está no quarto dos crápulas. Menos mal. Olho no relógio da parede. São 05:26 da manhã. Ainda está escuro. Vou para o quarto e me visto para sair. Abro as portas da parte do guarda-roupa que me cabe, pego as mochilas do quartel e a antiga da escola. Coloco nelas meus pertences mais importantes, minhas melhores roupas, fardamento, coturno, bem como o único par de tênis que tinha e um de chinelos. Vou ao meu cofre de lata retirar todas as minhas economias. Conto o dinheiro: duzentos e quarenta e três reais e sessenta centavos. Uma boa grana para um adolescente da periferia, se considerar que o salário mínimo daquela época era o equivalente a cento e vinte reais. Guardo a maioria dentro de uma das meias, deixando uns trocados na minha velha carteira de napa. Em seguida, coloco todas as minhas tralhas silenciosamente no sofá da sala, voltando para a cozinha com caneta e uma folha de caderno nas mãos. Coloco-a em cima de mesa e escrevo em letras garrafais uma única palavra: “covardes”. Em seguida, apago as luzes e sento-me no sofá aguardando o dia clarear, o que não demora muito a acontecer. Abro cuidadosamente primeiro a janela, depois a porta da frente. Em seguida, pego minhas coisas devagar – por causa das dores – e saio, tranco-a e jogo a chave pela janela, fechando-a discretamente por fora. Dou uma última olhada em volta e saio para a rua em direção ao ponto de ônibus.
     É uma gélida manhã de domingo. Felizmente não tive de esperar mais do que 15 minutos até um alimentador aparecer. Sou o único passageiro, posso sentar-me aonde quiser. O ônibus passa em frente de casa e isto me permite uma última vista. E digo última porque não pretendo aparecer aqui tão cedo. Pelo menos não para morar. Nunca mais. Se for digno de mim mesmo hei de me virar sozinho, abandonar esta mediocridade e vencer na vida. Não serei um derrotado que desconta suas frustrações nos filhos usando travessuras da juventude como válvula de escape.
     Sei que pode parecer a vocês uma revolta sem causa, um aforismo passageiro. Mas sinto informar-lhes que não é. Na realidade esta foi a gota d’água. Muitas outras destas aconteceram no passado, mesmo nas menores faltas. Como sempre lhes disse desde o começo deste relato, meus pais pouco se lixavam para nós, especialmente para mim. Já que sempre fui considerado um fardo para eles, o melhor mesmo é cair fora. Pra falar a verdade, há tempos eu já amadurecia esta ideia. Só não a tinha executado até agora porque não possuía um meio de subsistência. E de mais a mais, tudo nessa vida tem data de validade. E o meu prazo de morar com os pais definitivamente tinha acabado.
Confesso que tive medo. Ao olhar a casa - que um dia eu julgara ser também minha - passando pela última vez diante dos meus olhos, metade de mim pensou no que seria o futuro. De que talvez fosse loucura sair assim sem rumo, sem um bom plano. Já a outra metade, movida pelo rancor acumulado durante todos aqueles anos e a gana de vencer me dizia para não dar uma de “mulher de Ló”.

“Não se vive de passado. Olhe sempre à frente e não sucumba diante do medo de sentir a dor que a luta costuma trazer. Você é forte, jovem, inteligente e perseverante. Vai conseguir”…

     Estava tão absorto em meus problemas que levei um susto quando o cobrador me avisou que se quisesse descer, tinha de ser agora porque já era hora de saírem do terminal para dar outra volta no itinerário. Levanto-me tropegamente com minha carga, faço um sinal de positivo e desço. Vou à procura de um banco qualquer porque preciso de duas coisas; respirar um pouco de ar fresco até que a náusea desta maldita ressaca se aquiete e organizar um pouco as ideias, decidindo que rumo tomar.

Nenhum comentário:

Postar um comentário