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terça-feira, 13 de setembro de 2016

Crônicas de um recruta - Parte 42

     Bom dia, boa tarde, boa noite, mais nobre e fiéis leitores!

     Nosso recruta favorito passa por duas situações no mínimo inusitadas, e nos conta mais um pouco sobre o passado de sua família.
     Vamos acompanhar mais este capítulo desta divertida e interessante narrativa?




42

      No sábado me levantei da cama por volta das oito. Percebam; eu disse levantar, não acordar. Às seis já estava com os olhos arregalados. Não dormi até a hora que eu gostaria porque relógio biológico é mesmo uma máquina complicada; simplesmente não dá para ajustar de acordo com os nossos desejos. Meu irmão ainda está largadão, todo contorcido. Parece um boneco de pano que foi jogado desleixadamente em cima da cama. Resolvo me levantar porque se minha mãe descobrir que dormi de farda suja vai me encher o saco. Arranco o uniforme rapidamente e vou direto para o chuveiro. Estou mesmo precisando de um bom banho. No caminho, ouço meus pais discutirem por causa do esquecimento deles de providenciar qualquer tipo de proteção contra a geada que durante a madrugada, matou tudo o que havia sobrado na horta nos fundos de casa.
Pouquíssimo tempo depois ouço novas pragas, desta vez dirigidas a mim:
      - Como é, moleque? Vai ficar aí a manhã toda? Sabe quanto veio de luz o mês passado? - berra minha mãe.
      - Já vou, já saio! Não faz nem dez minutos que estou aqui, droga! - replico, indignado.
      - É bom mesmo! E maneira o tom, moleque. Só porque agora usa farda já está achando que é gente? - replica ameaçadoramente.
Não respondo. É inútil replicar. E perigoso. Penso duas coisas. Primeira: ironicamente, no quartel eu conseguia tomar banhos mais longos do que em casa. Segunda, a rotina de lá era sopa porque em casa a rigidez alcançava índices bem maiores. Dona Eulália dirigia a casa com punho teutônico e não se dava ao trabalho de usar luvas de pelica...
Saio do banheiro com o uniforme embrulhado na toalha molhada direto para o tanque de lavar roupas. Quero aproveitar este dia de sol para secá-la ainda hoje. Saio pela porta dos fundos – que fica na cozinha – e viro à direita para a lavanderia. “Lavanderia”. Outro eufemismo para um arangaço de madeira sem paredes coberto por telhas de zinco, cujo piso é uma calçada grosseira revestida por cacos de azulejos velhos onde há um tanque de cimento com duas bocas abastecidas por torneiras plásticas, apoiado numa estrutura de tijolos rebocados. Alguns baldes cheios de roupa que estão de molho e uma mesa velha de madeira completam o cenário.
      Lavo a farda, a toalha e algumas roupas de baixo o mais rápido possível. Ainda bem que não estavam muito sujas. Assim, uma lavagem leve dava conta. Apesar do frio fazia um sol maravilhoso, que as secariam em questão de umas três horas. Assim que saio do tanque chega a minha mãe com trouxas e mais trouxas. Contei mais de dez. Estranhei todo aquele volume. Não tínhamos tanta assim. Logo deduzi que ela voltou a lavar roupas para fora. Olho aquela cena desolado. Minhas mãos ficaram roxas em poucos minutos. Quantas horas levariam para ela conseguir lavar tudo aquilo?
      - Mãe, precisa de ajuda?
Sem parar o que está fazendo, olha-me com a expressão mais branda:
      - Se fizer o almoço já me ajuda bastante.
      - Ok.
Enquanto “lagarteio” - tentando recuperar a circulação sanguínea das mãos - continuo a observar aquela mulher valente, judiada pela vida por causa das más escolhas feitas pelos meus avós. Oriunda do interior, nascera nos anos cinquenta em uma família de sitiantes semi-analfabetos arrendatários de terra. Por tudo que sei dela, posso afirmar com certeza que não foi criada por amor, mas como mão de obra barata. Ela e os irmãos trabalharam duro na roça desde a tenra idade, realizando tarefas que adultos suariam a camisa para executar. E isso se dava porque a sobrevivência era ditada por uma série de fatores que iam desde o clima e as pragas da lavoura até a índole dos proprietários, que invariavelmente não era das melhores. O resultado torna-se óbvio; um círculo vicioso de mudanças, privações e miséria. Todo ano propriedade diferente. Numa – quando havia – escola diferente. Vizinhos diferentes. Casas(indignas desse nome) diferentes. Só o que não mudava era a falta de tudo e a onipresença do labor ingrato e infrutífero.
      Dona Eulália sonhou ser professora. Mas seus pais diziam que “lugar de mulher é em casa, cuidando da lida. Quem estuda muito vira vagabundo”. A muito custo conseguiu terminar o primário. Numa destas mudanças - lá no começo dos anos setenta - foi parar na cidadezinha onde meu pai nascera e onde também trabalhava duro na gleba de terra da família. Encontraram-se por acaso numa “quermesse”. Casaram-se em poucos meses e - fartos como estavam de tudo aquilo - resolveram que qualquer outro lugar seria melhor do que aquele. Mudaram-se na semana seguinte ao enlace. Vieram para Curitiba justamente porque para eles a capital representava a ruptura com tudo aquilo que faziam questão de deixar para trás. Sua única riqueza à época era uma mala de roupas e alguns pequenos presentes acondicionados num baú de madeira.
      Hoje eu entendo por que as visitas à família no interior eram tão raras. Se não me falha a memória, foram apenas três; quando eu nasci, quando a mãe do meu pai morreu e quando venderam o sitiozinho para fazer a partilha entre os irmãos. Meus avós maternos – talvez cansados daquela vida dura e sem sentido – se estabeleceram numa casinha na cidade onde “Seo” Celso e Dona Eulália conheceram-se, lá ficando até o fim de sua miserável existência, para usar as palavras da minha mãe. Não me lembro em nenhum momento de ela fazer questão de visitá-los quando por lá estávamos. Não a condeno.
      Meu pai havia saído para amealhar um dinheirinho também. Mas não era na banca de jornais do meu tio. Não sei porque cargas d'água resolveu não abri-la naquele sábado. Assim, o velho tratou de se virar por outra banda. Pegou pá e enxada e foi trabalhar numa obra ali perto, a convite de um conhecido que lá estava.
      Depois do almoço vou até o boteco da esquina comprar um cartão telefônico. Resolvi ligar para a “Ucraína”, dada a veemência com que – digamos – me pediu. Enfio-o no bolso da calça. Então ouço um estalo no fundo dos miolos. Corro para casa e vou até o varal. Reviro o bolso da gandola e acho o maldito papelzinho. Como previ. Está ilegível.
      Fico “aburrido, pero no mucho.” Não sei direito até hoje por que, mas não considerei esta uma desgraça universal. Acho que, no fundo no fundo eu estava mesmo indiferente à loura porque meu interesse residia na morena, entre outras razões. Eu ainda estava chateado com a forma que ela me tratou durante a vinda para casa. Indeciso sobre que atitude tomar. Achava que, assim como a Kayla, ela também era areia demais para o meu caminhãozinho. Que tudo aquilo era bom demais pra ser verdade. E, principalmente; resolvi testar – por mais que me parecesse loucura – seu real grau de interesse por mim. Que se estivesse realmente, absolutamente interessada, insistiria um pouco mais. Isso eu pensava naquela época. Hoje vejo que tudo aquilo era na verdade medo e baixa auto estima em todos os seus estados físicos; do sólido ao gasoso. Faltava-me entender que ela já tinha visto em mim o que eu ainda não havia enxergado; potencial. Pois é;

Quem eu quero não me quer, quem me quer mandei embora...”

      Pelo menos naquele momento. Como na confrontação anterior com aquele pedacinho de discórdia, coloquei novamente o assunto na caixa das decisões a definir e fiz força para esquecer do assunto, a fim de ter um pouco de paz naquele fim de semana.
     Acontece que não apareceu o “Seo Creysson” dizendo-me: “Seus problemas acabaram!!!” E sabe por quê? Porque, uma vez que uma categoria de problema foi temporariamente suprimida pelo meu eu despótico, outra categoria toma de assalto os pátios internos do “palácio presidencial” onde reside o pequeno ditador. Esta classe de rebelde ainda é mais recalcitrante do que a primeira, exigindo atitudes imediatas e de longo alcance. Grandes faixas portadas pela ralé que perguntavam: “O que vai fazer da vida?” eram esfregadas praticamente na cara do sujeitinho medíocre postado trêmulo na sacada. Em desespero, este convoca seus ministros e os põe a trabalhar, a pensar no rumo a ser tomado.
     Febrilmente começo a remoer todas as perguntas que faço-me constantemente desde o começo do ano. Penso no que o meu amigo “russinho” me disse. Sento- me no sofá da sala e fico lá por pouco tempo. Não consigo pensar com o Marquinho me enchendo de perguntas, falando como uma matraca. Depois de satisfazê-lo com as respostas que queria, resolvo sair. Pego bicicleta velha do meu pai e vou até o Parque Peladeiro, a uns dois quilômetros de casa. Encosto a bicicleta no tronco de uma árvore e deito-me no gramado em sua sombra. Ali encontro a paz que preciso para meditar no meu futuro.

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