Bom dia, boa tarde, boa noite, mais nobre e fiéis leitores!
Nosso recruta favorito passa por duas situações no mínimo inusitadas, e nos conta mais um pouco sobre o passado de sua família.
Vamos acompanhar mais este capítulo desta divertida e interessante narrativa?
42
No
sábado me levantei da cama por volta das oito. Percebam; eu disse
levantar, não acordar. Às seis já estava com os olhos arregalados.
Não dormi até a hora que eu gostaria porque relógio biológico é
mesmo uma máquina complicada; simplesmente não dá para ajustar de
acordo com os nossos desejos. Meu irmão ainda está largadão, todo
contorcido. Parece um boneco de pano que foi jogado desleixadamente
em cima da cama. Resolvo me levantar porque se minha mãe descobrir
que dormi de farda suja vai me encher o saco. Arranco o uniforme
rapidamente e vou direto para o chuveiro. Estou mesmo precisando de
um bom banho. No caminho, ouço meus pais discutirem por causa do
esquecimento deles de providenciar qualquer tipo de proteção contra
a geada que durante a madrugada, matou tudo o que havia sobrado na
horta nos fundos de casa.
Pouquíssimo
tempo depois ouço novas pragas, desta vez dirigidas a mim:
-
Como é, moleque? Vai ficar aí a manhã toda? Sabe quanto veio de
luz o mês passado? - berra minha mãe.
-
Já vou, já saio! Não faz nem dez minutos que estou aqui, droga! -
replico, indignado.
-
É bom mesmo! E maneira o tom, moleque. Só porque agora usa
farda já está achando que é gente? - replica ameaçadoramente.
Não
respondo. É inútil replicar. E perigoso. Penso duas coisas.
Primeira: ironicamente, no quartel eu conseguia tomar banhos mais
longos do que em casa. Segunda, a rotina de lá era sopa porque em
casa a rigidez alcançava índices bem maiores. Dona Eulália dirigia
a casa com punho teutônico e não se dava ao trabalho de usar luvas
de pelica...
Saio
do banheiro com o uniforme embrulhado na toalha molhada direto para o
tanque de lavar roupas. Quero aproveitar este dia de sol para secá-la
ainda hoje. Saio pela porta dos fundos – que fica na cozinha – e
viro à direita para a lavanderia. “Lavanderia”. Outro eufemismo
para um arangaço de madeira sem paredes coberto por telhas de zinco,
cujo piso é uma calçada grosseira revestida por cacos de azulejos
velhos onde há um tanque de cimento com duas bocas abastecidas por
torneiras plásticas, apoiado numa estrutura de tijolos rebocados.
Alguns baldes cheios de roupa que estão de molho e uma mesa velha de
madeira completam o cenário.
Lavo
a farda, a toalha e algumas roupas de baixo o mais rápido possível.
Ainda bem que não estavam muito sujas. Assim, uma lavagem leve dava
conta. Apesar do frio fazia um sol maravilhoso, que as secariam em
questão de umas três horas. Assim que saio do tanque chega a minha
mãe com trouxas e mais trouxas. Contei mais de dez. Estranhei todo
aquele volume. Não tínhamos tanta assim. Logo deduzi que ela voltou
a lavar roupas para fora. Olho aquela cena desolado. Minhas mãos
ficaram roxas em poucos minutos. Quantas horas levariam para ela
conseguir lavar tudo aquilo?
-
Mãe, precisa de ajuda?
Sem
parar o que está fazendo, olha-me com a expressão mais branda:
-
Se fizer o almoço já me ajuda bastante.
-
Ok.
Enquanto
“lagarteio” - tentando recuperar a circulação sanguínea das
mãos - continuo a observar aquela mulher valente, judiada pela vida
por causa das más escolhas feitas pelos meus avós. Oriunda do
interior, nascera nos anos cinquenta em uma família de sitiantes
semi-analfabetos arrendatários de terra. Por tudo que sei dela,
posso afirmar com certeza que não foi criada por amor, mas como mão
de obra barata. Ela e os irmãos trabalharam duro na roça desde a
tenra idade, realizando tarefas que adultos suariam a camisa para
executar. E isso se dava porque a sobrevivência era ditada por uma
série de fatores que iam desde o clima e as pragas da lavoura até a
índole dos proprietários, que invariavelmente não era das
melhores. O resultado torna-se óbvio; um círculo vicioso de
mudanças, privações e miséria. Todo ano propriedade diferente.
Numa – quando havia – escola diferente. Vizinhos diferentes.
Casas(indignas desse nome) diferentes. Só o que não mudava era a
falta de tudo e a onipresença do labor ingrato e infrutífero.
Dona
Eulália sonhou ser professora. Mas seus pais diziam que “lugar de
mulher é em casa, cuidando da lida. Quem estuda muito vira
vagabundo”. A muito custo conseguiu terminar o primário. Numa
destas mudanças - lá no começo dos anos setenta - foi parar na
cidadezinha onde meu pai nascera e onde também trabalhava duro na
gleba de terra da família. Encontraram-se por acaso numa
“quermesse”. Casaram-se em poucos meses e - fartos como estavam
de tudo aquilo - resolveram que qualquer outro lugar seria melhor do
que aquele. Mudaram-se na semana seguinte ao enlace. Vieram para
Curitiba justamente porque para eles a capital representava a ruptura
com tudo aquilo que faziam questão de deixar para trás. Sua única
riqueza à época era uma mala de roupas e alguns pequenos presentes
acondicionados num baú de madeira.
Hoje
eu entendo por que as visitas à família no interior eram tão raras.
Se não me falha a memória, foram apenas três; quando eu nasci,
quando a mãe do meu pai morreu e quando venderam o sitiozinho para
fazer a partilha entre os irmãos. Meus avós maternos – talvez
cansados daquela vida dura e sem sentido – se estabeleceram numa
casinha na cidade onde “Seo” Celso e Dona Eulália conheceram-se,
lá ficando até o fim de sua miserável existência, para usar as
palavras da minha mãe. Não me lembro em nenhum momento de ela fazer
questão de visitá-los quando por lá estávamos. Não a condeno.
Meu
pai havia saído para amealhar um dinheirinho também. Mas não era
na banca de jornais do meu tio. Não sei porque cargas d'água
resolveu não abri-la naquele sábado. Assim, o velho tratou de se
virar por outra banda. Pegou pá e enxada e foi trabalhar numa obra
ali perto, a convite de um conhecido que lá estava.
Depois
do almoço vou até o boteco da esquina comprar um cartão
telefônico. Resolvi ligar para a “Ucraína”, dada a veemência
com que – digamos – me pediu. Enfio-o no bolso da calça. Então
ouço um estalo no fundo dos miolos. Corro para casa e vou até o
varal. Reviro o bolso da gandola e acho o maldito papelzinho. Como
previ. Está ilegível.
Fico
“aburrido, pero no mucho.” Não sei direito até hoje por
que, mas não considerei esta uma desgraça universal. Acho que, no
fundo no fundo eu estava mesmo indiferente à loura porque meu
interesse residia na morena, entre outras razões. Eu ainda estava
chateado com a forma que ela me tratou durante a vinda para casa.
Indeciso sobre que atitude tomar. Achava que, assim como a Kayla, ela
também era areia demais para o meu caminhãozinho. Que tudo aquilo
era bom demais pra ser verdade. E, principalmente; resolvi testar –
por mais que me parecesse loucura – seu real grau de interesse por
mim. Que se estivesse realmente, absolutamente interessada,
insistiria um pouco mais. Isso eu pensava naquela época. Hoje vejo
que tudo aquilo era na verdade medo e baixa auto estima em todos os
seus estados físicos; do sólido ao gasoso. Faltava-me entender que
ela já tinha visto em mim o que eu ainda não havia enxergado;
potencial. Pois é;
“Quem
eu quero não me quer, quem me quer mandei embora...”
Pelo
menos naquele momento. Como na confrontação anterior com aquele
pedacinho de discórdia, coloquei novamente o assunto na caixa das
decisões a definir e fiz força para esquecer do assunto, a fim de
ter um pouco de paz naquele fim de semana.
Acontece
que não apareceu o “Seo Creysson” dizendo-me: “Seus
problemas acabaram!!!” E sabe por quê? Porque, uma vez que uma
categoria de problema foi temporariamente suprimida pelo meu eu
despótico, outra categoria toma de assalto os pátios internos do
“palácio presidencial” onde reside o pequeno ditador. Esta
classe de rebelde ainda é mais recalcitrante do que a primeira,
exigindo atitudes imediatas e de longo alcance. Grandes faixas
portadas pela ralé que perguntavam: “O que vai fazer da vida?”
eram esfregadas praticamente na cara do sujeitinho medíocre postado
trêmulo na sacada. Em desespero, este convoca seus ministros e os
põe a trabalhar, a pensar no rumo a ser tomado.
Febrilmente
começo a remoer todas as perguntas que faço-me constantemente desde
o começo do ano. Penso no que o meu amigo “russinho” me disse.
Sento- me no sofá da sala e fico lá por pouco tempo. Não consigo
pensar com o Marquinho me enchendo de perguntas, falando como uma
matraca. Depois de satisfazê-lo com as respostas que queria, resolvo
sair. Pego bicicleta velha do meu pai e vou até o Parque Peladeiro,
a uns dois quilômetros de casa. Encosto a bicicleta no tronco de uma
árvore e deito-me no gramado em sua sombra. Ali encontro a paz que
preciso para meditar no meu futuro.
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