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quinta-feira, 1 de setembro de 2016

Crônicas de um recruta - Parte 41

     Olá, pessoas!

     Mais um capítulo desta história divertida e cativante. O nosso recruta preferido segue batalhando pela sobrevivência, sem perder sua veia cômica, ácida e filosófica. Tem uma visão arguta, apesar de sua pouca idade. Vamos ler mais?




41

      O motorista abre as portas de trás. Tinha me esquecido que militar fardado não paga passagem. Pequena vantagem. Ainda bem, porque se eu tivesse de pagá-las após o período de instrução básica, praticamente metade do soldo iria apenas para cobrir meu deslocamento. Inviável.
      O ônibus estava quase vazio dado o horário. Já eram mais de 22:30. Assim, pudemos nos dar ao luxo de ir sentados. Fiz menção de ser cavalheiro, mas ela se recusou a isso, praticamente me ordenando a sentar primeiro. Sentados lado a lado, fico novamente em silêncio, com a cara amarrada. Ela ainda está constrangida, mas recobra o equilíbrio e reabre os canais de comunicação com tato e habilidade. A princípio, ouve apenas grunhidos e monossílabos como resposta. Em pouco tempo, novamente me envolve abordando assuntos agradáveis e interessantes, incorporando outra vez o perfil da aluna da Federal. Gradualmente, a conversa pende para assuntos pessoais. Resisto, porque não gosto de me expor, dado o meu humilde histórico. Percebendo isso, ela resolve falar de si mesma; De sua formação familiar, das suas origens e ascendência ucraniana. Diz-me que fala essa língua fluentemente, que é bilíngue desde sua tenra infância. Menciona sua idade: 22 anos. Conta como veio parar no Exército. Diz que teve uma infância difícil porque seu pai morreu quando era pequena. Que sua mãe criou-a e a seu irmão com grandes dificuldades. Que é bolsista na Federal, cursando enfermagem...
      Eu a escuto perplexo, por três razões. Primeira; é incomum, para dizer o mínimo, uma eslava abrir-se totalmente assim a uma pessoa que não conhece bem. Segunda; sua história de vida é tão ou mais humilde que a minha. Terceira; na sua cultura, quando uma mulher está interessada, costuma se comportar como a rainha do gelo, não com esta desenvoltura e simpatia.
      Por outro lado, as eslavas são extremamente decididas e persistentes quando querem algo. E quando confiam em alguém, sua abertura é total e a entrega, absoluta. Todas estas informações chegam a mim com a singeleza dos humildes. Sem arrogância ou heroísmos, muito menos a afetação dos que vencem esquecendo-se das suas origens. Mais uma vez cativa-me. Baixo a guarda. Sinto a obrigação de retribuir seu gesto de abertura e - por que não dizer - confiança. Assim ela “abre o cofre”. Conto-lhe sobre mim, meus sonhos, minha vida. Ela sorri e sorri, seus olhos brilham, sua expressão se ilumina, a identificação é mútua. Não notamos a passagem do tempo nem as trocas de ônibus nos terminais.
Estamos chegando ao Terminal Oficinas. Ciente disso, ela de repente atira à queima roupa:
      - Por quê não me ligou, moço?
Olho-a de soslaio, sem jeito. Não sei o que dizer. Vou explicar que estou a fim de uma superiora dela? Que no começo a menosprezei por causa isso? Que fiquei indeciso e quase joguei seu telefone fora?
      - Bom, é que não tive tempo...
      - Então, por favor, dê um jeitinho! Arranje um tempinho, se possível neste fim de semana, tá bom? - diz, dando-me uma piscadela.
Eu sorrio, sem graça. Apenas faço que sim com a cabeça.
      - Vou esperar, viu?
      - Ok. - respondo.
Dizendo isso, ela se levanta e vai para a porta do expresso.Quando o ônibus para e as portas se abrem, vira-se e me acena pela última vez. Retribuo maquinalmente o gesto.
      Eita ferro! Então não era da farda que ela tinha gostado, cavalgadura! Embolou tudo. Vééééio!!!... E agora? O que se faz em um caso como esse? Como decidir? O que decidir? Como? Onde? Quando? Por quê? Se achava que já tinha um grande conflito, estava re-don-da-men-te enganado. Agora são dois. Ou melhor, três. O expresso chega ao Terminal Centenário e justamente quando abre suas portas, o Jardim Acrópole – que é o meu ônibus – sai. Na tabela de horários está escrito que só haverá outro dentro de 40 minutos. São 23:10. Não vou ficar plantado aqui - neste frio desgraçado - até quase meia noite só para pegar o busão. Vou a pé. Chego mais rápido em casa. E de quebra esquento o pelo. Vai ser bom também por outro motivo, apesar do cansaço; preciso meditar um pouco.
      Passo pela roleta e saio do terminal. Não há vivalma na rua; carros, motos nem qualquer outro tipo de som ou movimento. Silêncio absoluto apenas interrompido por um ou outro transformador e o ritmo cadenciado dos coturnos quando tocam o asfalto. Grossa neblina recobre tudo. Mal se veem as lâmpadas dos postes. O ar gélido petrifica as narinas. Exalo nuvens de vapor. Os dedos dos pés e das mãos adormecem. Mesmo assim, não aperto o passo porque sinto que esta é a ocasião perfeita para a mais profunda introspecção.
      Cerca de vinte minutos depois estou abrindo o portão de casa após uma caminhada de aproximadamente três quilômetros. Não há nem uma luz acesa em casa. Todos estão dormindo o sono dos justos. Penso com meus botões que a maioria dos pais da face da Terra devem invejar esta capacidade ímpar de não se preocupar com sua prole que os meus tem. Sorrio ao formular este pensamento. Um sorriso triste, mas verdadeiro. Por mais que esteja frio, não tenho vontade de entrar. Este ambiente fantasmagórico me encanta. Pode parecer contraditório, mas me traz uma sensação de paz que não sinto em nenhum outro momento. É como se estivesse em outra dimensão. Até hoje, sempre que posso saio para caminhar em noites nevoentas, mergulhando na imensidão branca. Para mim é a projeção exterior da submersão nos mais recônditos quadrantes do meu eu.
      Alguém disse certa vez - e acho até que já citei isso aqui - que somos a soma das nossas escolhas. Nada mais verdadeiro. Se é assim, toda escolha que fazemos deve ser cuidadosamente pesada de acordo com as melhores informações disponíveis. Justamente aí é que está o problema. Desde quando temos acesso ao mapa completo da situação em que nos encontramos num determinado ponto da existência? Na maioria das vezes, visualiza-se apenas algumas partes de um quebra-cabeça em constante mutação, cujas peças na sua maioria estão fora de nosso alcance. O que de concreto se sabe é muito pouco. O restante fica na conjectura e estatística. E o pior; geralmente são estas as que tem o poder de alterações de grande impacto e longo alcance.
      Aonde você quer chegar com esse papo?” Talvez vocês me perguntem. Seguinte; todo este preâmbulo é para que entendam que eu estava numa daquelas encruzilhadas da vida; profissional, acadêmica(se é que dá para falar assim) e sentimental(óh!). Já abordei parte dessas questões aqui. Muitas variáveis que estão totalmente fora do meu controle vão influir no rumo da minha vida, como já influíram no passado próximo, lembram? E agora surge um novo elemento, conforme já leram. Está é a razão da minha angústia. Bom, falo mais a respeito quando conseguir tomar uma decisão. Vou matutar mais um pouco.
      Por fim o frio e o cansaço me vencem. Concluo que deve ser uma da manhã. Entro silenciosamente, pé por pé para não acordar minha família. Sorrateiramente vou para o meu quarto, tiro os coturnos e tateio pela minha cama, ajeitando as cobertas no instinto. Isso mesmo. Adormeço fardado e sem banho. Bem coisa de “piá pançudo”. Paciência. Você iria para o chuveiro de madrugada numa noite de geada? Eu não!

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