Olá, pessoas!
Mais um capítulo desta história divertida e cativante. O nosso recruta preferido segue batalhando pela sobrevivência, sem perder sua veia cômica, ácida e filosófica. Tem uma visão arguta, apesar de sua pouca idade. Vamos ler mais?
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O
motorista abre as portas de trás. Tinha me esquecido que militar
fardado não paga passagem. Pequena vantagem. Ainda bem, porque se eu
tivesse de pagá-las após o período de instrução básica,
praticamente metade do soldo iria apenas para cobrir meu
deslocamento. Inviável.
O
ônibus estava quase vazio dado o horário. Já eram mais de 22:30.
Assim, pudemos nos dar ao luxo de ir sentados. Fiz menção de ser
cavalheiro, mas ela se recusou a isso, praticamente me ordenando a
sentar primeiro. Sentados lado a lado, fico novamente em silêncio,
com a cara amarrada. Ela ainda está constrangida, mas recobra o
equilíbrio e reabre os canais de comunicação com tato e
habilidade. A princípio, ouve apenas grunhidos e monossílabos como
resposta. Em pouco tempo, novamente me envolve abordando assuntos
agradáveis e interessantes, incorporando outra vez o perfil da aluna
da Federal. Gradualmente, a conversa pende para assuntos pessoais.
Resisto, porque não gosto de me expor, dado o meu humilde histórico.
Percebendo isso, ela resolve falar de si mesma; De sua formação
familiar, das suas origens e ascendência ucraniana. Diz-me que fala
essa língua fluentemente, que é bilíngue desde sua tenra infância.
Menciona sua idade: 22 anos. Conta como veio parar no Exército. Diz
que teve uma infância difícil porque seu pai morreu quando era
pequena. Que sua mãe criou-a e a seu irmão com grandes
dificuldades. Que é bolsista na Federal, cursando enfermagem...
Eu
a escuto perplexo, por três razões. Primeira; é incomum, para
dizer o mínimo, uma eslava abrir-se totalmente assim a uma pessoa
que não conhece bem. Segunda; sua história de vida é tão ou mais
humilde que a minha. Terceira; na sua cultura, quando uma mulher está
interessada, costuma se comportar como a rainha do gelo, não com
esta desenvoltura e simpatia.
Por
outro lado, as eslavas são extremamente decididas e persistentes
quando querem algo. E quando confiam em alguém, sua abertura é
total e a entrega, absoluta. Todas estas informações chegam a mim
com a singeleza dos humildes. Sem arrogância ou heroísmos, muito
menos a afetação dos que vencem esquecendo-se das suas origens.
Mais uma vez cativa-me. Baixo a guarda. Sinto a obrigação de
retribuir seu gesto de abertura e - por que não dizer - confiança.
Assim ela “abre o cofre”. Conto-lhe sobre mim, meus sonhos, minha
vida. Ela sorri e sorri, seus olhos brilham, sua expressão se
ilumina, a identificação é mútua. Não notamos a passagem do
tempo nem as trocas de ônibus nos terminais.
Estamos
chegando ao Terminal Oficinas. Ciente disso, ela de repente atira à
queima roupa:
-
Por quê não me ligou, moço?
Olho-a
de soslaio, sem jeito. Não sei o que dizer. Vou explicar que estou a
fim de uma superiora dela? Que no começo a menosprezei por causa
isso? Que fiquei indeciso e quase joguei seu telefone fora?
-
Bom, é que não tive tempo...
-
Então, por favor, dê um jeitinho! Arranje um tempinho, se possível
neste fim de semana, tá bom? - diz, dando-me uma piscadela.
Eu
sorrio, sem graça. Apenas faço que sim com a cabeça.
-
Vou esperar, viu?
-
Ok. - respondo.
Dizendo
isso, ela se levanta e vai para a porta do expresso.Quando o ônibus
para e as portas se abrem, vira-se e me acena pela última vez.
Retribuo maquinalmente o gesto.
Eita
ferro! Então não era da farda que ela tinha gostado, cavalgadura!
Embolou tudo. Vééééio!!!... E agora? O que se faz em um caso como
esse? Como decidir? O que decidir? Como? Onde? Quando? Por quê? Se
achava que já tinha um grande conflito, estava re-don-da-men-te
enganado. Agora são dois. Ou melhor, três. O expresso chega ao
Terminal Centenário e justamente quando abre suas portas, o Jardim
Acrópole – que é o meu ônibus – sai. Na tabela de horários
está escrito que só haverá outro dentro de 40 minutos. São 23:10.
Não vou ficar plantado aqui - neste frio desgraçado - até quase
meia noite só para pegar o busão. Vou a pé. Chego mais rápido em
casa. E de quebra esquento o pelo. Vai ser bom também por outro
motivo, apesar do cansaço; preciso meditar um pouco.
Passo
pela roleta e saio do terminal. Não há vivalma na rua; carros,
motos nem qualquer outro tipo de som ou movimento. Silêncio absoluto
apenas interrompido por um ou outro transformador e o ritmo
cadenciado dos coturnos quando tocam o asfalto. Grossa neblina
recobre tudo. Mal se veem as lâmpadas dos postes. O ar gélido
petrifica as narinas. Exalo nuvens de vapor. Os dedos dos pés e das
mãos adormecem. Mesmo assim, não aperto o passo porque sinto que
esta é a ocasião perfeita para a mais profunda introspecção.
Cerca
de vinte minutos depois estou abrindo o portão de casa após uma
caminhada de aproximadamente três quilômetros. Não há nem uma luz
acesa em casa. Todos estão dormindo o sono dos justos. Penso com
meus botões que a maioria dos pais da face da Terra devem invejar
esta capacidade ímpar de não se preocupar com sua prole que os meus
tem. Sorrio ao formular este pensamento. Um sorriso triste, mas
verdadeiro. Por mais que esteja frio, não tenho vontade de entrar.
Este ambiente fantasmagórico me encanta. Pode parecer contraditório,
mas me traz uma sensação de paz que não sinto em nenhum outro
momento. É como se estivesse em outra dimensão. Até hoje, sempre
que posso saio para caminhar em noites nevoentas, mergulhando na
imensidão branca. Para mim é a projeção exterior da submersão
nos mais recônditos quadrantes do meu eu.
Alguém
disse certa vez - e acho até que já citei isso aqui - que somos a
soma das nossas escolhas. Nada mais verdadeiro. Se é assim, toda
escolha que fazemos deve ser cuidadosamente pesada de acordo com as
melhores informações disponíveis. Justamente aí é que está o
problema. Desde quando temos acesso ao mapa completo da situação em
que nos encontramos num determinado ponto da existência? Na maioria
das vezes, visualiza-se apenas algumas partes de um quebra-cabeça em
constante mutação, cujas peças na sua maioria estão fora de nosso
alcance. O que de concreto se sabe é muito pouco. O restante fica na
conjectura e estatística. E o pior; geralmente são estas as que tem
o poder de alterações de grande impacto e longo alcance.
“Aonde
você quer chegar com esse papo?” Talvez vocês me perguntem.
Seguinte; todo este preâmbulo é para que entendam que eu estava
numa daquelas encruzilhadas da vida; profissional, acadêmica(se é
que dá para falar assim) e sentimental(óh!). Já abordei parte
dessas questões aqui. Muitas variáveis que estão totalmente fora
do meu controle vão influir no rumo da minha vida, como já
influíram no passado próximo, lembram? E agora surge um novo
elemento, conforme já leram. Está é a razão da minha angústia.
Bom, falo mais a respeito quando conseguir tomar uma decisão. Vou
matutar mais um pouco.
Por
fim o frio e o cansaço me vencem. Concluo que deve ser uma da manhã.
Entro silenciosamente, pé por pé para não acordar minha família.
Sorrateiramente vou para o meu quarto, tiro os coturnos e tateio pela
minha cama, ajeitando as cobertas no instinto. Isso mesmo. Adormeço
fardado e sem banho. Bem coisa de “piá pançudo”. Paciência.
Você iria para o chuveiro de madrugada numa noite de geada? Eu não!
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