Bom dia, boa tarde e boa noite, amigos fiéis leitores!
Hoje mais um capítulo desta epopeia que vai narrando as aventuras e desventuras de um jovem no serviço militar. Sua visão única, irreverente e ao mesmo tempo ácida não só do serviço militar, mas das relações humanas...
Vamos ler?
40
À
tarde, a pior matéria – se é que dá para chamar isso de matéria
– nos é ministrada. Caramba! Quem quer entrar no quartel para
aprender a fazer faxina? Aliás, isto foi outra coisa de que eu nunca
ouvi falar. Lógico! Não dá pra contar vantagem pra gatinha. Pensa
só:
“ -
Como foi seu dia, amor?
-
Hoje foi muito puxado, mô. Lavei umas 50 privadas, encerei uns 400
metros quadrados de piso de tacos e por último fiz cri-cri no pátio
a tarde toda. Estou quebrado, me faz uma massagem?”
Já
imaginaram?
Esta
“instrução” foi dada por um cabo. Seu nome era Airosa. Alto,
magro e encurvado. Não muito, mas o suficiente para compará-lo a um
galho seco. Olhos inquietos como os das lontras e um jeitão de
matuto. Acho que, por óbvio, todo e qualquer sargento consideraria
esta tarefa algo muito abaixo da sua dignidade. Oficial então, nem
se fala. Por isso mandaram o “pobre”. Ele bem que tentou manter
toda a pompa e circunstância que deveria existir numa sessão de
instrução militar. Impossível. O tema não ajudava. A
contrariedade estampada nas caras e bocas tanto dele quanto da
recrutagem deixava claro que seria uma longa tarde. Nem vou me
aprofundar na descrição disso porque, francamente, quem quer saber
a posição corporal correta ao se varrer o pátio ou qual a
quantidade de sapólio necessária para se esfregar uma tampa de
privada? Diabos, por que a última instrução da semana tem de ser a
mais chata? Putz! Acabo de me lembrar; ainda não é a última. Em
plena sexta feira teremos aulas até as dez da noite. Que des-gra-ça!
Finalmente,
rancho e instrução noturna. Fomos conduzidos pelo Airosa até a
sala em que estivemos pela primeira vez na época de seleção. Lá
estavam já posicionados bonecos de simulação e vasto material de
apoio. O “galho seco” nos autoriza a sentar, dizendo-nos para
aguardar em silêncio o próximo instrutor. Como sempre, os “quatro
cavaleiros do Apocalipse” sentam-se próximos.
Ao
sentar-me acabei baixando a guarda. Resultado; o cansaço me toma de
assalto rápida e eficazmente. Com os braços cruzados, fecho meus
olhos pelo que me pareceu apenas alguns segundos. Desperto atordoado
com os colegas levantando-se em uníssono diante da militar que
entrava. Levanto, capenga. Mas o que vejo faz todo o meu torpor
evaporar com a mesma velocidade em que se instalou.
“Não
é possível! Que mil raios me partam!”
Simplesmente
não consigo acreditar nos meus olhos. Mas é verdade...
-
À vontade! - ordena.
E
se apresenta:
-
Boa noite a todos. Sou a terceiro-sargento Karaczok. Mas, como creio
que este meu nome é um pouco difícil de pronunciar, sugiro a vocês
que me chamem de sargento Salete, ok?
Dizendo
isso, olha em volta e se fixa em mim, com uma expressão que me
pareceu ser de ironia, satisfação ou qualquer coisa parecida. Fico
totalmente sem reação. Só olho, embasbacado, enquanto ela começa
as sua preleções. Somos ordenados a nos sentar novamente. Aproveito
para olhar discretamente em volta, a fim de avaliar meus
companheiros. Queria saber duas coisas. Primeiro; se eles tinham
notado algo da minha reação. Segundo; queria avaliar a deles. O
Sandro a olha como quem vê a Gisele Bundchen na sua frente. O
Jackson nada demonstra, apenas sorri daquele seu jeito tão
característico. O Vinícius me surpreendeu: Foi a primeira vez que o
vi com aquela expressão. Seu rosto estava vermelho(por quase tudo,
aliás), sua boca entreaberta num semi sorriso, olhos vidrados e
brilhando. Parecia uma caricatura perfeita de desenho animado. Até
me deu vontade de sorrir ao pensar nisso.
A
instrução de primeiros socorros foi interessante e didática. Mas
como sempre a cambada se bateu bastante, crus como estavam nesta e em
qualquer outra das artes de trabalho desta vida. Acho que foi assim
também porque a turma prestava mais atenção na instrutora da que
na matéria. Finalmente chega o fim da aula. A sargento Salete nos
dispensa. Não me levanto de imediato. Fico ali, matutando. Meus
amigos passam por mim e dão tapas nas costas, à guisa de despedida.
O Vinícius se acerca e diz:
-
Tá a fim de uma carona, moy brat? Meu pai deve estar
esperando lá fora.
-
Obrigado amigo. Mas não. Vou de ônibus mesmo.
-
Tem certeza? - insiste.
-
Tenho. Mas obrigado de qualquer forma. E, de mais a mais, preciso de
um banho antes de ir. Não dá pra entrar nem sequer no ônibus desse
jeito. - digo, fazendo aquele gesto típico de dar “um confere”
nas asas.
-
Além do mais, se o teu pai não tem obrigação de aguentar nem o
seu futum, quem dirá o meu... - emendo, dando um tapa na nuca dele.
E completo:
-
Se manda daqui! Ischezayut!
Esta
última expressão em russo – que quer dizer “desapareça”,se
manda” - o fez sorrir.
-
Bom fim de semana, então. - diz.
-
Pra você também, mano velho! - respondo.
Ele
se dirige à porta, não sem antes dar uma última olhada para a
sargento Salete, que no momento estava concentrada em apenas recolher
seu material, e finalmente sai. Fico ali me ensebando, na tentativa
de puxar papo ali mesmo, mas me arrependo da ideia. Resolvo sair
junto com um dos últimos recrutas que por ali ainda estavam. Mas, me
dou conta de que sou o último. Estou dividido pelo receio e
curiosidade. Ainda tento uma saída à francesa, mas é tarde demais:
-
Recruta Flávio! Mas que prazer em reencontrá-lo! Como vai?
-
Bem senhora, obrigado! - respondo, laconicamente.
-
Senhora? - pergunta ironicamente, sorrindo.
-
Bem, é minha superiora, não? - replico, já constrangido.
-
Tem razão. Pelo menos dos portões para dentro. Lá fora é
diferente. Certo?
-
Se a senhora está dizendo... - estou mortificado.
-
Está bem, eu me rendo. Diga-me; você está com muita pressa,
recruta?
-
Senhora?
-
Acho que entendeu minha pergunta, não? - inquire, com todo o seu ser
exalando ironia e divertimento.
-
Não senhora.
-
Neste caso, poderia fazer o favor de me esperar no portão principal?
Saio em aproximadamente dez minutos. E isso é uma ordem, ouviu? -
diz, dando-me uma piscadela marota.
-
Sim senhora. - respondo, chocho. Maquinalmente lhe presto
continência, viro e saio.
Dirijo-me
para a saída do “20”, com as “catracas” assoviando dentro da
cabeça, num diálogo interno totalmente desconexo. Que situação
surreal! Eu me achando o poderoso aquele dia no terminal, pagando de
general para a Salete, sem saber que a moça também é
militar. Mas que grandessíssimo idiota! Bom, mas que fique claro que
a princípio eu nem dei muita “pelota” para ela. Foi ela quem
insistiu no papo. Foi ela quem me deu seu telefone. Aí você
novamente está bancando o idiota porque nunca conseguiria
arrancar-lhe esta informação...Alou??
Chego
na guarita ao lado da casa da guarda e estaco ali, esperando a
beldade. Tirito naquela temperatura siberiana. Cinco, dez, quinze,
vinte minutos se passam e nada da moça aparecer! Neste meio tempo,
após várias olhadelas em minha direção, um dos sentinelas – na
falta do que fazer – resolve me aporrinhar:
-
O que pensa que está fazendo aí, recruta? - arrota o molambo.
-
Cumprindo ordens. - replico, seco.
-
Que diabo de ordem, reco? - vocifera, prevalecido.
-
Uma ordem minha! - interrompe a sargento Salete.
O
soldado se perfila imediatamente. Ela olha em minha direção e
pergunta, com a voz mais melíflua do mundo:
-
Vamos, Flávio?
-
Sim, senhora. - respondo, cada vez mais embasbacado.
Estou
sem entender absolutamente nada. Saímos do quartel, seguindo em
direção do ponto de ônibus mais próximo. Só então me dou conta
de que me esqueci até de tomar banho e pegar minhas tralhas no
alojamento. Fico roxo de vergonha. A polaca conseguiu me
desestabilizar por completo.
Ela
está muito cheirosa. Noto que está vestida com a farda de passeio
completa. Na instrução era o seu uniforme de combate. Portanto,
deve ter tomado uma ducha. Isto explica a demora. Por incrível que
pareça, o uniforme revela um corpo ainda mais bonito do que se
notava em suas roupas civis quando a encontrei pela primeira vez. Meu
desconforto é visível através de cada gesto, cada palavra, cada
movimento. Ela nota isto e me inquire francamente:
-
Flávio, o que que há? Por que este constrangimento todo? Por um
acaso está se sentindo inferior? Se for por isso, eu retiro minhas
insígnias e a identificação! Olhe, viu? Pronto! - diz ela,
retirando os galões das mangas da jaqueta, a biriba e os bottons da
gola da camisa.
Resolvo
abrir o jogo:
-
Desculpe, sen... Salete. É que foi uma surpresa e tanto para mim. E
não só isso. Acabei esquecendo até de trocar de uniforme e tomar
uma ducha e...
Ela
cai numa sonora gargalhada. E responde:
-
Me perdoe! Por favor, me perdoe! Eu é que me esqueci disso! Mandei
você me esperar no portão principal e fui obedecida ao pé da
letra! - continua, rindo. E completa:
-
Mas não se preocupe! Você continua tão cheiroso quanto aquele dia
no terminal... dizendo isto, ri-se novamente.
Um
riso gostoso, descontraído e simpático, apesar de sarcástico. Eu
tenho vontade de enfiar a cabeça num buraco.
“ Se
está a fim de me deixar à vontade, seu serviço está completo. Foi
pra isso que requisitou minha companhia?”
Minha
expressão se conforma de acordo com este pensamento. Ela percebe
imediatamente e para com aquela brincadeira de mau gosto. Então,
contra-ataco:
-
Que diferença entre a estudante da Federal e a sargento do Exército!
Ela
sente a pancada. Silencia subitamente e ruboriza-se. Está escuro e
mesmo assim se nota. Portanto doeu.
-
Desculpe, Flávio. Foi uma brincadeira de extremo mau gosto. Perdão.
- diz, compungida.
-
Deixa pra lá. - respondo, seco, ainda com cara de poucos amigos.
Por
um momento, silêncio constrangedor. Olho em volta vejo o ônibus se
aproximar à distância. Resolvo remexer no bolso da gandola para
tirar o “vale transpobre”. Com ele vem involuntariamente o
papelzinho onde estava escrito o nome e telefone da moça que comigo
ali estava. Ela o identifica de imediato apesar da penumbra, e abre
um lindo sorriso. Eu a olho e encolho os ombros. Nisso faço sinal e
o ônibus para para embarcarmos. “A conversa continua depois”
penso eu.
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