Leitores amigos de sempre, como vão?
Eu vou bem, obrigado! O nosso amigo recruta, nem tanto. Pois é, o período de Instrução Básica é o mais difícil...
Mas ele supera tudo! Certeza! Vamos acompanhá-lo?
39
Farda
lavada, barriga cheia e banho tomado, não necessariamente nesta
ordem. Hora da nossa segunda aula de russo. Começamos a combinar
entre nós que palavras significavam o quê e em quais momentos
seriam usadas. Assim, firmamos as bases do que seria nosso código
particular. E que pertenceria apenas a nós quatro. Justamente por
isso afastávamos – amigavelmente, a princípio– qualquer
“bicudo” que se aproximasse. Quem sabe se no futuro, por qualquer
razão o cara poderia nos trair se estivesse metido em problemas?
Paranoia? A resposta está no que eu já contei a vocês lá atrás.
Sempre tem um puxa saco ou dedo duro disposto a qualquer coisa para
salvar a própria pele ou mesmo tentar uma vida mais mansa às custas
de alguém. Na corporação esses tipos surgem do nada, então é
sempre melhor prevenir.
Esta
aula foi mais extensa. Diga-se de passagem que o Vinícius é um
excelente professor. Não tem muita paciência, mas este detalhe não
atrapalha em nada. Vê-se claramente que fica feliz em ensinar a nós
alguma coisa sobre a cultura sua e de seus ancestrais.
Não
nos estendemos demais porque, para variar, estávamos na “última
lona”. Por volta das nove da noite a grande maioria do pessoal já
está na cama e as luzes gradualmente se apagando no dormitório.
Resolvemos fazer o mesmo. Antes, vou até o vestiário e tiro meu
uniforme reserva do armário para “passá-lo” durante a noite.
Deitado,
começo automaticamente a repassar os acontecimentos do dia. Repleto
de altos e baixos, surpresas e reviravoltas. Uma autêntica aventura.
Acredito que hoje senti todos os tipos de emoções que o ser humano
conhece. Fiz até análise! Por falar nisso, gostaria muito de saber
a que conclusões a Kayla chegou, se é que chegou a alguma. Eu sim,
tirei umas bem interessantes. Primeira: realmente agradei. Não
estava em nenhum momento “viajando”. Apesar de ser psicóloga
profissional, ela simplesmente não conseguia ocultar que minha
companhia a agradava. Suas palavras e sua linguagem corporal deixavam
isso claro. Muito claro. Não só durante a sessão de hoje, mas em
todas as vezes que nos encontramos. E isto me leva a um postulado
interessante: Será que ela não está esse tempo todo fazendo
questão de mostrar – discretamente – seu interesse? Pode até
ser mas, num cara como eu? Por quê? O tempo vai dizer... Isto me
leva a outra hipótese que, se for correta, é ainda mais promissora:
ela não tem ninguém. Então agora é só ligar os pontos!
Bom,
não tão rápido. Preciso de mais subsídios, na verdade. Não lhe
fiz pergunta alguma sobre sua vida pessoal porque não era a ocasião
para isso. Por enquanto estou mais no território da conjectura do
que dos fatos. Seja como for, tempo para descobrir o que realmente se
passa não falta. Nada como um dia de cada vez.
Mais
uma coisa; nem me dei conta se eu deixei claro o meu interesse nela.
Acho que sim, mas não foi da forma mais produtiva, por assim dizer.
Vou mudar de tática e ver como a coisa anda. For falar nisso,
preciso criar – sutilmente – uma ocasião propícia para
conversarmos informalmente, numa atmosfera descontraída. Como? Ainda
não sei, mas vou me dedicar ao assunto com afinco.
Aos
poucos o cansaço me vence. Os olhos pesam, o torpor se instala. Só
não caio rapidamente no sono por causa do facho de luz que inunda o
dormitório, proveniente do “giroflex” da torre de controle da
Base Aérea. Por conta disso, sou obrigado a dormir com a cabeça
coberta todas as noites. Não gosto, mas aí está. Será que algum
dia o comando vai se dignar a ordenar o PO a instalar pelo menos
algumas persianas nestes janelões?
Acordo
alguns minutos antes do toque da alvorada. Pois é, meu relógio
biológico já está se condicionando. Fico esperando-o para me
levantar, já que não estou com a mínima vontade de desperdiçar
nem sequer um minuto de “conforto”. Entre aspas mesmo, porque o
colchão que tenho na minha cama há pelo menos uns dez anos é mais
confortável do que esta espuma molenga eufemisticamente chamada de
colchão.
Toque
incerto, chocho. O corneteiro deve estar doente, com sono ou sem
fôlego hoje. Engraçado! O desgraçado estava a plenos pulmões
quando veio tocar aquela tralha dentro do nosso alojamento no dia das
nossas “boas vindas”. Ou não era o mesmo. Não importa.
Mais
uma vez geada grossa, muito frio mesmo. Formamos em frente ao
pavilhão sozinhos, conforme ordem dada anteriormente. Ali tínhamos
de aguardar o primeiro instrutor do dia, que nos conduziria à parada
diária e só depois para o café da manhã. Até nisso a gente se
lascava, porque invariavelmente os nossos “comandantes”
designados tinham mais o que fazer. Por isso sempre demoravam a dar
as caras, fazendo com que nós sempre fôssemos os últimos pra tudo;
inspeção, rancho, comunicados, ordens, dispensa, banho e tudo o
mais que se possa imaginar na rotina diária do quartel. O pior dos
atrasos era para as refeições. Primeiro; menos tempo para comer.
Segundo; sempre haviam os da “turma do repeteco”, uns sacos sem
fundo que comiam como o diabo e que, sabe-se lá como, sempre davam
um jeito de chegar primeiro. E o pior, volta e meia o responsável
pela cozinha não calculava direito a quantidade diária de
mantimentos a serem preparados para a tropa. Resultado: faltava
comida. O comando demorou bastante para resolver este imbróglio. A
solução para o primeiro problema foi uma espécie de cartão dado a
cada um e que era picotado quando o vivente pegava a sua gororoba.
Meio humilhante, mas funcionou. O segundo resolveu-se de um modo mais
traumático, mas igualmente eficaz; dias de “cana” distribuídos
generosamente entre o taifeiro-mor e sua equipe.
No
meu ponto de vista, ainda havia outro problema. Como estávamos no
período de instrução básica ainda não pertencíamos a nenhuma
das companhias do batalhão. Uma vez que não tínhamos formação
definida, não podíamos ser alocados porque fatalmente não
teríamos o que fazer, dada a nossa inabilidade para executar
qualquer ordem, cumprir qualquer “rolha”. Assim, tecnicamente nós
éramos militares e ao mesmo tempo não éramos, já que o
regulamento prevê que todo militar está designado ou pertence a
uma unidade. “É , mas vocês estavam designados para o “20”,
paspalhão! Dãããã!”... talvez alguém diga. Mais uma vez
errado. Para pertencer a um batalhão, antes o militar tem de
pertencer a uma Companhia. Por sua vez, para pertencer a uma
Companhia, o “rajado” tem de pertencer a um determinado pelotão
desta subunidade. E conforme expliquei antes, o pelotão é
subdividido em GC's. Cada Grupo de Combate é formado por dois
esquadrões. Sacaram? Como se diz; “Militar tem de ter matrícula”.
Explico. Cada militar efetivo tem sua matrícula, ou número de
série. Este é composto de 6 dígitos que indicam toda a sua ordem
de designação. A que recebi juntamente com a cobiçada boina preta
após o campo base era esta:
203224
Da
esquerda para a direita os primeiros dois números indicam o
batalhão, o terceiro a companhia, o quarto o pelotão, o quinto o
esquadrão e o sexto a posição do soldado na ordem do esquadrão,
que é a menor de todas as unidades possíveis numa organização
militar. Ou seja, eu era o n°. 4 do 2° Esquadrão do 2° Pelotão
da 3ª Companhia do 20° Batalhão de Infantaria Blindada, capisce?
Retomando(depois
de toda esta explicação); Estávamos no “limbo”, orfanados.
Sendo assim, a supervisão da instrução ficava a cargo da CCS até
o final da formação básica. Esta, por sua vez designava a nós os
instrutores para o dia de acordo com a programação do curso de
formação básica. Invariavelmente vinham das outras CIA's, e tinham
de nos ministrar sua especialidade durante uma ou mais manhãs ou
tardes no decorrer da semana sem deixar de cumprir com sua rotina
normal, estabelecida via boletim do comando. Traduzindo: sobrecarga
de trabalho. E ai do graduado que deixasse de cumprir as ordens do
dia! Portanto, instruir a “recaiada” era um fardo pesado de se
carregar. Isso explica a raiva aparentemente sem motivo que sentiam
por nós.
“Sabe
como é: apanhe do maior, desconte no menor.”
Este
“ódio” vinha também – inexplicavelmente, no meu entender –
dos instrutores oriundos da própria CCS que, na teoria existia
justamente para isso. Talvez por que a sua situação fosse a mesma.
Não deixo de frisar que – justiça seja feita – existiam
exceções. E as melhores delas eram o “subão” Macaris(um dos
avaliadores físicos) e o sargento Canestraro, da Cartografia e
Navegação.
Somos
enviados novamente para a área do cerimonial, juntamente com o
sargento Reis, integrante do PO. Um carioca sério. Sem ódio no
coração, mas também sem “amor”. Baixo, pouco mais de 1,70
metro. Sotaque carregado nos “aixxxss”. Pele morena, olhos
castanhos e cabelos cuidadosamente aparados, sem estar raspado como o
nosso. Porte físico mediano e expressão de neutralidade distante.
Durante toda a manhã, ensaiamos um sem número de vezes a famosa
ordem unida. Distanciamento, cadência e postura foram examinados,
treinados e repetidos à exaustão. Troço chato pra cacete. E
cansativo. Pelo menos todo aquele movimento serviu para repelir o
frio, que reinava soberano. No final, uma volta por todo o interior
do “20”, com atenção especial ao fazer curvas porque neste
quesito fomos o mais completo desastre no dia da cerimônia de
incorporação. Devo admitir que fizemos o troço direito. É. Ficou
legal.
Nenhum comentário:
Postar um comentário