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quarta-feira, 13 de julho de 2016

Crônicas de um recruta - Parte 39

     Leitores amigos de sempre, como vão?

     Eu vou bem, obrigado! O nosso amigo recruta, nem tanto. Pois é, o período de Instrução Básica é o mais difícil...
     Mas ele supera tudo! Certeza! Vamos acompanhá-lo?


 
39

      Farda lavada, barriga cheia e banho tomado, não necessariamente nesta ordem. Hora da nossa segunda aula de russo. Começamos a combinar entre nós que palavras significavam o quê e em quais momentos seriam usadas. Assim, firmamos as bases do que seria nosso código particular. E que pertenceria apenas a nós quatro. Justamente por isso afastávamos – amigavelmente, a princípio– qualquer “bicudo” que se aproximasse. Quem sabe se no futuro, por qualquer razão o cara poderia nos trair se estivesse metido em problemas? Paranoia? A resposta está no que eu já contei a vocês lá atrás. Sempre tem um puxa saco ou dedo duro disposto a qualquer coisa para salvar a própria pele ou mesmo tentar uma vida mais mansa às custas de alguém. Na corporação esses tipos surgem do nada, então é sempre melhor prevenir.
      Esta aula foi mais extensa. Diga-se de passagem que o Vinícius é um excelente professor. Não tem muita paciência, mas este detalhe não atrapalha em nada. Vê-se claramente que fica feliz em ensinar a nós alguma coisa sobre a cultura sua e de seus ancestrais.
Não nos estendemos demais porque, para variar, estávamos na “última lona”. Por volta das nove da noite a grande maioria do pessoal já está na cama e as luzes gradualmente se apagando no dormitório. Resolvemos fazer o mesmo. Antes, vou até o vestiário e tiro meu uniforme reserva do armário para “passá-lo” durante a noite.
      Deitado, começo automaticamente a repassar os acontecimentos do dia. Repleto de altos e baixos, surpresas e reviravoltas. Uma autêntica aventura. Acredito que hoje senti todos os tipos de emoções que o ser humano conhece. Fiz até análise! Por falar nisso, gostaria muito de saber a que conclusões a Kayla chegou, se é que chegou a alguma. Eu sim, tirei umas bem interessantes. Primeira: realmente agradei. Não estava em nenhum momento “viajando”. Apesar de ser psicóloga profissional, ela simplesmente não conseguia ocultar que minha companhia a agradava. Suas palavras e sua linguagem corporal deixavam isso claro. Muito claro. Não só durante a sessão de hoje, mas em todas as vezes que nos encontramos. E isto me leva a um postulado interessante: Será que ela não está esse tempo todo fazendo questão de mostrar – discretamente – seu interesse? Pode até ser mas, num cara como eu? Por quê? O tempo vai dizer... Isto me leva a outra hipótese que, se for correta, é ainda mais promissora: ela não tem ninguém. Então agora é só ligar os pontos!
      Bom, não tão rápido. Preciso de mais subsídios, na verdade. Não lhe fiz pergunta alguma sobre sua vida pessoal porque não era a ocasião para isso. Por enquanto estou mais no território da conjectura do que dos fatos. Seja como for, tempo para descobrir o que realmente se passa não falta. Nada como um dia de cada vez.
Mais uma coisa; nem me dei conta se eu deixei claro o meu interesse nela. Acho que sim, mas não foi da forma mais produtiva, por assim dizer. Vou mudar de tática e ver como a coisa anda. For falar nisso, preciso criar – sutilmente – uma ocasião propícia para conversarmos informalmente, numa atmosfera descontraída. Como? Ainda não sei, mas vou me dedicar ao assunto com afinco.
      Aos poucos o cansaço me vence. Os olhos pesam, o torpor se instala. Só não caio rapidamente no sono por causa do facho de luz que inunda o dormitório, proveniente do “giroflex” da torre de controle da Base Aérea. Por conta disso, sou obrigado a dormir com a cabeça coberta todas as noites. Não gosto, mas aí está. Será que algum dia o comando vai se dignar a ordenar o PO a instalar pelo menos algumas persianas nestes janelões?
Acordo alguns minutos antes do toque da alvorada. Pois é, meu relógio biológico já está se condicionando. Fico esperando-o para me levantar, já que não estou com a mínima vontade de desperdiçar nem sequer um minuto de “conforto”. Entre aspas mesmo, porque o colchão que tenho na minha cama há pelo menos uns dez anos é mais confortável do que esta espuma molenga eufemisticamente chamada de colchão.
      Toque incerto, chocho. O corneteiro deve estar doente, com sono ou sem fôlego hoje. Engraçado! O desgraçado estava a plenos pulmões quando veio tocar aquela tralha dentro do nosso alojamento no dia das nossas “boas vindas”. Ou não era o mesmo. Não importa.
Mais uma vez geada grossa, muito frio mesmo. Formamos em frente ao pavilhão sozinhos, conforme ordem dada anteriormente. Ali tínhamos de aguardar o primeiro instrutor do dia, que nos conduziria à parada diária e só depois para o café da manhã. Até nisso a gente se lascava, porque invariavelmente os nossos “comandantes” designados tinham mais o que fazer. Por isso sempre demoravam a dar as caras, fazendo com que nós sempre fôssemos os últimos pra tudo; inspeção, rancho, comunicados, ordens, dispensa, banho e tudo o mais que se possa imaginar na rotina diária do quartel. O pior dos atrasos era para as refeições. Primeiro; menos tempo para comer. Segundo; sempre haviam os da “turma do repeteco”, uns sacos sem fundo que comiam como o diabo e que, sabe-se lá como, sempre davam um jeito de chegar primeiro. E o pior, volta e meia o responsável pela cozinha não calculava direito a quantidade diária de mantimentos a serem preparados para a tropa. Resultado: faltava comida. O comando demorou bastante para resolver este imbróglio. A solução para o primeiro problema foi uma espécie de cartão dado a cada um e que era picotado quando o vivente pegava a sua gororoba. Meio humilhante, mas funcionou. O segundo resolveu-se de um modo mais traumático, mas igualmente eficaz; dias de “cana” distribuídos generosamente entre o taifeiro-mor e sua equipe.
      No meu ponto de vista, ainda havia outro problema. Como estávamos no período de instrução básica ainda não pertencíamos a nenhuma das companhias do batalhão. Uma vez que não tínhamos formação definida, não podíamos ser alocados porque fatalmente não teríamos o que fazer, dada a nossa inabilidade para executar qualquer ordem, cumprir qualquer “rolha”. Assim, tecnicamente nós éramos militares e ao mesmo tempo não éramos, já que o regulamento prevê que todo militar está designado ou pertence a uma unidade. “É , mas vocês estavam designados para o “20”, paspalhão! Dãããã!”... talvez alguém diga. Mais uma vez errado. Para pertencer a um batalhão, antes o militar tem de pertencer a uma Companhia. Por sua vez, para pertencer a uma Companhia, o “rajado” tem de pertencer a um determinado pelotão desta subunidade. E conforme expliquei antes, o pelotão é subdividido em GC's. Cada Grupo de Combate é formado por dois esquadrões. Sacaram? Como se diz; “Militar tem de ter matrícula”. Explico. Cada militar efetivo tem sua matrícula, ou número de série. Este é composto de 6 dígitos que indicam toda a sua ordem de designação. A que recebi juntamente com a cobiçada boina preta após o campo base era esta:

203224
Da esquerda para a direita os primeiros dois números indicam o batalhão, o terceiro a companhia, o quarto o pelotão, o quinto o esquadrão e o sexto a posição do soldado na ordem do esquadrão, que é a menor de todas as unidades possíveis numa organização militar. Ou seja, eu era o n°. 4 do 2° Esquadrão do 2° Pelotão da 3ª Companhia do 20° Batalhão de Infantaria Blindada, capisce?
      Retomando(depois de toda esta explicação); Estávamos no “limbo”, orfanados. Sendo assim, a supervisão da instrução ficava a cargo da CCS até o final da formação básica. Esta, por sua vez designava a nós os instrutores para o dia de acordo com a programação do curso de formação básica. Invariavelmente vinham das outras CIA's, e tinham de nos ministrar sua especialidade durante uma ou mais manhãs ou tardes no decorrer da semana sem deixar de cumprir com sua rotina normal, estabelecida via boletim do comando. Traduzindo: sobrecarga de trabalho. E ai do graduado que deixasse de cumprir as ordens do dia! Portanto, instruir a “recaiada” era um fardo pesado de se carregar. Isso explica a raiva aparentemente sem motivo que sentiam por nós.

Sabe como é: apanhe do maior, desconte no menor.”

Este “ódio” vinha também – inexplicavelmente, no meu entender – dos instrutores oriundos da própria CCS que, na teoria existia justamente para isso. Talvez por que a sua situação fosse a mesma. Não deixo de frisar que – justiça seja feita – existiam exceções. E as melhores delas eram o “subão” Macaris(um dos avaliadores físicos) e o sargento Canestraro, da Cartografia e Navegação.
      Somos enviados novamente para a área do cerimonial, juntamente com o sargento Reis, integrante do PO. Um carioca sério. Sem ódio no coração, mas também sem “amor”. Baixo, pouco mais de 1,70 metro. Sotaque carregado nos “aixxxss”. Pele morena, olhos castanhos e cabelos cuidadosamente aparados, sem estar raspado como o nosso. Porte físico mediano e expressão de neutralidade distante. Durante toda a manhã, ensaiamos um sem número de vezes a famosa ordem unida. Distanciamento, cadência e postura foram examinados, treinados e repetidos à exaustão. Troço chato pra cacete. E cansativo. Pelo menos todo aquele movimento serviu para repelir o frio, que reinava soberano. No final, uma volta por todo o interior do “20”, com atenção especial ao fazer curvas porque neste quesito fomos o mais completo desastre no dia da cerimônia de incorporação. Devo admitir que fizemos o troço direito. É. Ficou legal.

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