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quinta-feira, 7 de julho de 2016

Crônicas de um recruta - Parte 35

Olá, pessoas!

     Segue a rotina da caserna! Nosso recruta preferido e seus amigos continuam a nos surpreender, como verão neste "capítulo". Vamos nos divertir?




35

      Terça-feira. Toque da alvorada, como habitual. Clima “russo”. Geou pela primeira vez naquele ano que por sinal foi um dos mais frios da década. A manhã correu sem muitas novidades. Mais uma sessão de TFM, desta vez com a avaliação semanal que os instrutores fazem para aferir nosso progresso. Meu índice passou de “I”, de insuficiente para “R”, de regular na barra fixa. Reflexo daquela distensão ainda na fase de seleção, creio eu. Pensava que estava cem por cento, mas a prática comprovou que não. Nas demais categorias, todos os índices vão de “B” a “MB”. O único entre nós que ficava sempre com “E” em todos os quesitos era o nosso amigo Jackson “armário”. Um autêntico “Caterpillar”. Frequentemente impressionava os avaliadores de tal forma que arrancava deles expressões tais como essa(neste caso, na barra fixa):
      - Ah! Vai tomar no cu, Jackson! Desce daí! Chega! Não vou mais contar esta merda! Cavanha(o nosso Sargento “batatinha”), põe 18 aí na ficha desse “tarado”! - berrava via de regra o Tenente Graziano.
      O Jackson, só para arreliar, travava os braços na posição em que estivessem quando ouvia as pragas e ali ficava, olhando com a cara mais tranquila do mundo em volta - como se estivesse suportando o peso de um simples graveto, não o seu próprio - sorrindo com todos os dentes. Só quando o superior ordenava com mais veemência que ele descesse é que o fazia. Sempre sorrindo, olhava para eles, pegava com o polegar e o indicador na pala da “tampa do lixo” numa espécie de cumprimento de cowboy e só então voltava para a formação. Eu, o russinho e o Sandro trocávamos olhares de assombro. Mesmo sabendo que o cara trabalhou na construção civil por algum tempo, era difícil de acreditar em nossos olhos. Isso explica aquela fome de nordestino retirante.

Lógico! Quanto maior o desempenho, maior o consumo!...”

      Nisso a manhã gélida passou. A tarde seguiu-se em ritmo tranquilo na instrução de legislação, traquejo e disciplina militar. Um tanto maçante, mas necessário. Afinal, decorar todas aquelas regrinhas me pouparia de uma série de aborrecimentos.
      Final de instrução. Somos conduzidos novamente à área do cerimonial para a descida da bandeira, que é ditada pelo ritmo do corneteiro. Os recrutas são então informados de que hoje não haverá instrução noturna e, portanto, estão dispensados do serviço até a manhã seguinte. Bom, isso não refresca muito porque estamos em regime de internato. De qualquer forma, o descanso é muito bem vindo por causa do nosso baixo condicionamento físico e também pelo fato de que o TFM de hoje nos sugou até o talo. O único porém é que não há absolutamente nada para distrair nossas mentes. Assim, aquela noite se passa numa lentidão enervante. Para não dizer que foi um desperdício total, os quatro “Cavaleiros do Apocalipse” se reúnem para a primeira e bastante adiada aula de russo, que foi combinada com o Vinícius no primeiro dia de incorporados. O básico do básico, mas interessante. E que nos será muito útil, tenho certeza.
      Gradualmente nos adequávamos à rotina do quartel, quase que totalmente absorvidos por ela. Uma parte importante que não mencionei até agora era a parada diária. Não diz muita coisa para um civil. Mas calma que eu explico. A parada diária é uma destas rotinas onde o comando faz a avaliação da guarnição que vai entrar em serviço naquele dia. São inspecionados o estado, a limpeza e alinhamento do fardamento, se as botas estão cuidadosamente limpas e engraxadas, verificados - no caso dos soldados e cabos - os cartões de cabelo e se a tigrada raspou a fuça. Aqui cabe um parêntese; Lembra de que lhes falei de uma cartolinazinha ordinária protegida por um plástico? Então, a partir da primeira raspagem dos nossos “cocos”, temos de pedir a um oficial que assine o dito cujo na semana correspondente, a fim de ficarmos quites com as prestações do “carnê do baú”. Toda semana, barbeiro. Detalhe: só o primeiro corte foi por conta do Ministério do Exército. Todos os demais ou saem do nosso bolso em espécie para o barbeiro civil dentro do batalhão, ou são descontados no nosso holerite. Que maravilha!!!E este expediente do desconto só foi aprovado depois de uma série de encrencas por causa dos calotes da tropa. O problema foi tão sério que o coronel comandante em pessoa teve de intervir para resolvê-lo, já que tudo quanto é patente estava metida no rolo.
      Voltando: Depois, um “desfile” para o comandante e em seguida a mini cerimônia de hasteamento da bandeira onde todos, não importa onde estiverem no momento, lhe prestam continência. Pensando bem, depois de toda esta descrição fico surpreso por nenhum de nós ter ido pro xilindró até aquele momento(com exceção daqueles dois frouxos). Sim porque qualquer falta, por mais insignificante que seja pode dar cadeia pro militar. Sucumbiu àquela vontade irresistível de coçar a bunda durante a cerimônia? Espantou mosquito? Peidou? Arrotou? Se mexeu? Piscou? Se explica para o comandante da sua companhia. Se ele aceitar a tua justificativa molambo, “tá safo.” Se não, pra jaula! Este procedimento, aliás, a tenentada chama de “momento marreco”, com algumas variações regionais. Nos quartéis de São Paulo e no Rio é a “hora do pato”, se não me engano. Diga-se de passagem que o superior engolir a história do faltoso era mais difícil que coçar o saco com as mãos nas costas...
      Salamaleques da pragmática militar encerrados, cada homem às suas atribuições. Digo homens, porque naquela época - apesar de poderem ingressar por concurso público - ainda era raro ver mulheres na corporação, em especial dando expediente num batalhão de infantaria. Quando haviam, se concentravam nas funções administrativas, lotadas em sua maioria no Quartel General da 5° Região Militar, que fica até hoje no bairro Pinheirinho. A “base” da Tenente Kayla era lá também. As suas atribuições é que a traziam até o “20”.
      Estou desperto, noite alta. Apesar do cansaço, minha mente se recusa a me deixar adormecer. Deitado em meu catre no alojamento, volto a pensar nela. Está virando uma obssessão. Acho que estou apaixonado... É uma pena que a recíproca não seja verdadeira. Sei que estou vivendo uma ilusão. Primeiro, porque seu mundo é completamente diferente do meu. Ela já ingressou no Exército como oficial. Deve ter tido uma boa estrutura familiar que lhe deu suporte para que pudesse se concentrar apenas nos estudos. Sendo assim, provavelmente se originou de uma família de classe média, no mínimo. Vendo as coisas a partir desta perspectiva, o que um cara como eu poderia lhe oferecer? Uma mulher com todos aqueles atributos de personalidade, intelectuais e físicos teria pencas de homens bem posicionados dentro e fora do quartel que fariam qualquer coisa para tê-la ao seu lado. Segundo: Quem sabe ela já tivesse alguém, com quem estaria nesse exato momento relaxando em casa, assistindo um filme ou talvez simplesmente sentados no sofá conversando, esquentando-se nos braços um do outro nesta noite fria? Este último pensamento doeu fundo. Uma dor quase física, que me deixou à beira das lágrimas. Imediatamente, minha mente me traz uma memória recente; o papo com o Vinicius no refeitório e sua pergunta que me atingiu como um soco: “E você?”
      Sim, e eu? O que vou fazer da minha vida? Depois de decidir, quando vou começar? Por onde? Voltarei para a vida civil depois do meu ano obrigatório? Se sim, que profissão escolherei? O que vou estudar e como? Se não, como farei para permanecer na corporação? O que é necessário para virar um “reco engajado”? E depois? Me graduar? Em quê? Acho melhor parar por aqui. Um problema por vez. A única conclusão concreta é que se eu quiser chegar a qualquer lugar - quer como civil, quer como militar – terei de “papirar”, e muito. Quem sabe assim um dia eu tenha alguma chance com ela... Quem sabe?

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