Saudações, amigos deste humilde blog.
Hoje, mais um pedacinho desta história que vai se avolumando, desenvolvendo personagens complexos e interessantes. O Flávio vai se aprimorando, olhando o mundo de um modo diferente a cada nova experiência, sem nunca perder sua visão cômica, irônica e ácida das coisas...
Bom, com vocês, o "capítulo" 34 desta epopeia...
Espero que gostem!
34
A
princípio eu não tinha reparado. Me dei conta depois que o sargento
não tinha vindo conosco. Talvez tenha sido retido pela Kayla para -
pelo menos – tentar se explicar. Justificar o porque daquela
exposição absurda dos dois “condenados” por aquela grave
infração. Como eu queria ser uma mosquinha para poder entrar lá e
ouvir a conversa! Também fiquei me perguntando sobre a sua – pelo
menos para mim – súbita aparição. Lembro-me de que ela tinha
dito que estaria aqui no “20” apenas às quartas. Raciocinando,
fica óbvio. Provavelmente ela ficou sabendo do ocorrido pelos meios
normais e veio correndo para cá. Afinal, esta era sem dúvida uma
situação incomum que necessitaria de sua imediata atenção.
Não
demorou muito para aparecer um substituto. Se “nom de guerre”
era Arcanjo. Cabo Arcanjo. Um sujeito alto, porte médio e com cara
de areia mijada. Cabelos pretos e olhos meio cinzentos. Calculo sua
idade em talvez uns 25 anos. Sua expressão de urubu malandro não me
agradou nem um pouco. O sujeito exalava afetação. Constatei
rapidinho que era um seboso, nojento até a medula. Logo que se
postou diante de nós pôs-se a arrotar com sua voz de besouro
rola-bosta:
- Moscocéfalos fardados! Amebas anencéfalas repugnantes! Permitam
que me apresente: Meu nome é Arcanjo. CABO Arcanjo para vocês,
ordinários seres inferiores!...
“
Pu-ta-queo-pa-riu... É
demais para um dia só!...Onde estão os fuzis quando precisamos
deles?”
…
- portanto, ficarão retidos aqui até ordem superiores, entendido? -
conclui ele, andando de um lado para o outro como um
pavão-de-pernas-de-graveto olhando para o infinito.
“É
claro, paspalhão! Claro como água que ficaremos por aqui até que
algum facínora desgraçado da sua espécie nos faça o favor de
decidir nossos próximos passos!”
O
homem anda diante da tropa como se fosse o Leônidas redivivo, usando
um vocabulário rebuscado e desconexo em frases que não faziam o
menor sentido, com certeza decoradas de alguns volumes da Reader's
Digest. Olho discretamente em volta e o que vejo são expressões
que variam desde o enfado até uma vontade incontrolável de rir do
papel ridículo do deslumbrado. Entre os meus amigos, é o Vinícius
quem tem a pior. Bufa, vermelho como um tomate. O Sandro levanta uma
das sobrancelhas exatamente como faria o Sr. Spock quando está
perplexo com alguma coisa. A do Jackson é de puro escárnio. Ele mal
se contém...
Pelo
jeito, aquela era sua primeira oportunidade de “comando”. Que ao
que tudo indica, não era tão comando assim. Se ele não nos
conduziu a lugar nenhum e veio ali apenas para nos vigiar, só podia
significar uma coisa: o sujeito não estava mandando nada. Sabe como
é, “cabo não executa porque não é soldado e não manda porque
não é sargento...” Seja como for, aquela masturbação mental não
durou muito. Eu diria que apenas o suficiente para que ele atingisse
um orgasmo psicológico meia boca. O “empata foda” logo chegou,
despachando o sujeito.
A
cara do jagunço estava com a expressão mais contorcida que eu já
tinha visto. Ainda pior do que aquele fatídico dia do exame médico,
quando deu uma tonfada na “ferramenta” de um boiola presente.
Absolutamente nada disse. Apenas nos ordenou a segui-lo para o
rancho. Só depois é que - em forma fora do refeitório - concluí
que sofreríamos ali mesmo toda a carga de sua fúria contida:
-
Recrutas, atenção! Instrução de Treinamento Prático
Profissional! Auditório 2 acelerado!
Surpresa!
Nada de reprimendas, humilhações, NADA! Que santo remédio! A
hierarquia realmente funciona por aqui...
A
instrução de TPP desta noite consistia na tentativa de imprimir em
nossas jovens mentes as artes da mecânica de automóveis e
blindados. Lógico, algo muito superficial e ainda teórico, dada a
complexidade do assunto. Eu, é claro, fiquei em êxtase. Sou vidrado
nestas coisas.
Nosso
instrutor de mecânica era o Terceiro Sargento Cândido, responsável
direto pela manutenção das viaturas do batalhão. Aquele mesmo que
teve dó de mim no dia dos testes físicos, quando caí na armadilha
alcunhada de “campo minado”. Eu o reconheci de imediato durante a
formalidade de “troca de comando de instrução” que para mim é
apenas um outro nome para
“pega-logo-esta-corja-e-vê-se-enfia-alguma-coisa-nestas-cabeças-ocas”.
Em um primeiro momento, não me reconheceu. Só quando lhe perguntei
algo sobre a matéria é que se lembrou do episódio. Sorri
discretamente, ao responder:
-Bom,
recruta 26, se considerar que um motor a diesel 8 cilindros não
ultrapassa os 3300 giros em regime de operação normal, posso
afirmar que a regulagem precisa da bomba injetora é um autêntico
“campo minado”.
Pronto!
Tinha que acabar com o meu bom humor. Os caras não perdem mesmo uma! Por
falar nisso, acabei me esquecendo completamente do sujeito que me
aplicou o trote. Não sei nem sequer o seu nome. Taí uma coisa em
que não tinha pensado; não o vi desde que engajei. Por onde anda?
Que eu saiba, ninguém deu baixa ainda, portanto está por aí em
algum lugar. Mas onde? O que faz? Está lotado em qual companhia?
Pretendo descobrir.
A
instrução correu rápida como um raio. Muito interessante e
instrutiva. A didática do Cândido era boa. Não excelente, mas dava
para entender bem talvez por causa do meu interesse na matéria.
Somos dispensados ali mesmo, sem maior cerimônia. Saímos para o ar
gélido da noite. Forte cerração tomava conta da região e fiquei
feliz por ainda não termos recebido qualquer instrução de tiro e
porte de armamento. Assim não éramos designados para a guarda. Em
noites frias como aquela, isto era a melhor coisa que poderia nos
acontecer.
“De
vez em quando, a ignorância é uma bênção...”
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