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terça-feira, 5 de julho de 2016

Crônicas de um recruta - Parte 34

Saudações, amigos deste humilde blog.

     Hoje, mais um pedacinho desta história que vai se avolumando, desenvolvendo personagens complexos e interessantes. O Flávio vai se aprimorando, olhando o mundo de um modo diferente a cada nova experiência, sem nunca perder sua visão cômica, irônica e ácida das coisas...
     Bom, com vocês, o "capítulo" 34 desta epopeia...

Espero que gostem!


 

34
 

     A princípio eu não tinha reparado. Me dei conta depois que o sargento não tinha vindo conosco. Talvez tenha sido retido pela Kayla para - pelo menos – tentar se explicar. Justificar o porque daquela exposição absurda dos dois “condenados” por aquela grave infração. Como eu queria ser uma mosquinha para poder entrar lá e ouvir a conversa! Também fiquei me perguntando sobre a sua – pelo menos para mim – súbita aparição. Lembro-me de que ela tinha dito que estaria aqui no “20” apenas às quartas. Raciocinando, fica óbvio. Provavelmente ela ficou sabendo do ocorrido pelos meios normais e veio correndo para cá. Afinal, esta era sem dúvida uma situação incomum que necessitaria de sua imediata atenção.
Não demorou muito para aparecer um substituto. Se “nom de guerre” era Arcanjo. Cabo Arcanjo. Um sujeito alto, porte médio e com cara de areia mijada. Cabelos pretos e olhos meio cinzentos. Calculo sua idade em talvez uns 25 anos. Sua expressão de urubu malandro não me agradou nem um pouco. O sujeito exalava afetação. Constatei rapidinho que era um seboso, nojento até a medula. Logo que se postou diante de nós pôs-se a arrotar com sua voz de besouro rola-bosta:
      - Moscocéfalos fardados! Amebas anencéfalas repugnantes! Permitam que me apresente: Meu nome é Arcanjo. CABO Arcanjo para vocês, ordinários seres inferiores!...
Pu-ta-queo-pa-riu... É demais para um dia só!...Onde estão os fuzis quando precisamos deles?”

      … - portanto, ficarão retidos aqui até ordem superiores, entendido? - conclui ele, andando de um lado para o outro como um pavão-de-pernas-de-graveto olhando para o infinito.

É claro, paspalhão! Claro como água que ficaremos por aqui até que algum facínora desgraçado da sua espécie nos faça o favor de decidir nossos próximos passos!”

      O homem anda diante da tropa como se fosse o Leônidas redivivo, usando um vocabulário rebuscado e desconexo em frases que não faziam o menor sentido, com certeza decoradas de alguns volumes da Reader's Digest. Olho discretamente em volta e o que vejo são expressões que variam desde o enfado até uma vontade incontrolável de rir do papel ridículo do deslumbrado. Entre os meus amigos, é o Vinícius quem tem a pior. Bufa, vermelho como um tomate. O Sandro levanta uma das sobrancelhas exatamente como faria o Sr. Spock quando está perplexo com alguma coisa. A do Jackson é de puro escárnio. Ele mal se contém...
      Pelo jeito, aquela era sua primeira oportunidade de “comando”. Que ao que tudo indica, não era tão comando assim. Se ele não nos conduziu a lugar nenhum e veio ali apenas para nos vigiar, só podia significar uma coisa: o sujeito não estava mandando nada. Sabe como é, “cabo não executa porque não é soldado e não manda porque não é sargento...” Seja como for, aquela masturbação mental não durou muito. Eu diria que apenas o suficiente para que ele atingisse um orgasmo psicológico meia boca. O “empata foda” logo chegou, despachando o sujeito.
      A cara do jagunço estava com a expressão mais contorcida que eu já tinha visto. Ainda pior do que aquele fatídico dia do exame médico, quando deu uma tonfada na “ferramenta” de um boiola presente. Absolutamente nada disse. Apenas nos ordenou a segui-lo para o rancho. Só depois é que - em forma fora do refeitório - concluí que sofreríamos ali mesmo toda a carga de sua fúria contida:
      - Recrutas, atenção! Instrução de Treinamento Prático Profissional! Auditório 2 acelerado!
Surpresa! Nada de reprimendas, humilhações, NADA! Que santo remédio! A hierarquia realmente funciona por aqui...
      A instrução de TPP desta noite consistia na tentativa de imprimir em nossas jovens mentes as artes da mecânica de automóveis e blindados. Lógico, algo muito superficial e ainda teórico, dada a complexidade do assunto. Eu, é claro, fiquei em êxtase. Sou vidrado nestas coisas.
      Nosso instrutor de mecânica era o Terceiro Sargento Cândido, responsável direto pela manutenção das viaturas do batalhão. Aquele mesmo que teve dó de mim no dia dos testes físicos, quando caí na armadilha alcunhada de “campo minado”. Eu o reconheci de imediato durante a formalidade de “troca de comando de instrução” que para mim é apenas um outro nome para “pega-logo-esta-corja-e-vê-se-enfia-alguma-coisa-nestas-cabeças-ocas”. Em um primeiro momento, não me reconheceu. Só quando lhe perguntei algo sobre a matéria é que se lembrou do episódio. Sorri discretamente, ao responder:
      -Bom, recruta 26, se considerar que um motor a diesel 8 cilindros não ultrapassa os 3300 giros em regime de operação normal, posso afirmar que a regulagem precisa da bomba injetora é um autêntico “campo minado”.
      Pronto! Tinha que acabar com o meu bom humor. Os caras não perdem mesmo uma! Por falar nisso, acabei me esquecendo completamente do sujeito que me aplicou o trote. Não sei nem sequer o seu nome. Taí uma coisa em que não tinha pensado; não o vi desde que engajei. Por onde anda? Que eu saiba, ninguém deu baixa ainda, portanto está por aí em algum lugar. Mas onde? O que faz? Está lotado em qual companhia? Pretendo descobrir.
      A instrução correu rápida como um raio. Muito interessante e instrutiva. A didática do Cândido era boa. Não excelente, mas dava para entender bem talvez por causa do meu interesse na matéria. Somos dispensados ali mesmo, sem maior cerimônia. Saímos para o ar gélido da noite. Forte cerração tomava conta da região e fiquei feliz por ainda não termos recebido qualquer instrução de tiro e porte de armamento. Assim não éramos designados para a guarda. Em noites frias como aquela, isto era a melhor coisa que poderia nos acontecer.

De vez em quando, a ignorância é uma bênção...”

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