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quinta-feira, 30 de junho de 2016

Crônicas de um recruta - Parte 33

Olá, pessoas!

Depois de algum tempo, estamos de volta. E este tempo se explica naquela máxima de que a vida é uma caixinha de surpresas...

Enfim, mais uma parte desta divertida aventura. Leiamos?




33

      Sou despertado rudemente pelo Jackson. Tonto de sono, tento compreender o que se passa. Olhando ao redor vejo todos os colegas em posição de sentido junto às suas camas. O relógio da parede marca 17:46. Portanto, hora de juntar o rebanho para mais uma sessão de tosquia. Como sempre, o Barretão é quem comanda o show. Francamente! Será que só ele é quem cuida da instrução dos recrutas? Será possível?...
      ...- Vamos, bonequinhas! Tenho algo muuuito importante para lhes mostrar. Formem lá fora! Vou ser generoso. Dois minutos! VÃO!
Sua expressão é de incontida satisfação. Formados na “Avenida” Marochi, ouvimos sua verborreia:
      - Eu não sei se prestaram atenção ao que disse na sexta-feira. Prestaram?
Silêncio.
      - Parece que não! Muito bem, vou lhes refrescar a memória. Eu disse que todo aquele que não se apresentasse para cumprir com suas obrigações hoje pontualmente às 0700 horas seria exemplarmente punido, não falei?
Silêncio sinistro...
      - Pois é, farândula! Acontece que alguns aqui entre vocês são sujeitos obtusos, anencéfalos desgraçados que não medem as consequências dos seus atos. Putinhas covardes que não merecem envergar este uniforme! - vocifera, batendo teatralmente no peito com a mão direita espalmada.
Naquele momento, me veio à mente a imagem de um documentário das antigas da TV Cultura sobre vida selvagem. Um baita macacão troncudo batendo no peito e arreganhando os dentes diante de uma bando de filhotes para mostrar quem manda... - E hoje – continua, posudo como Napoleão – julgo imperioso...

Ave, Caesar!”

...fixar em suas cabeças ocas mais uma importantíssima lição. Como é fundamental honrar seus compromissos e cumprir com suas responsabilidades e o que acontece quando alguém acha que pode quebrar as regras!
Silêncio aterrador...
      … - DIREITA, VOLVER!!! Ao meu comando, MÁÁRCH!
Somos conduzidos para a frente do “20”. Foi então que fui apresentado ao lugar onde a tigrada “bebe café de canequinha”. A famigerada cadeia do quartel... Dois PE's postados, um em cada lado da porta de entrada onde se lia acima nas inevitáveis letras verde-oliva: Reclusão. Ficamos em fila única encostados na parede do pavilhão, enquanto o “Jagunço” entra para alguma tratativa qualquer. A cambada se entreolhava, inquirindo uns aos outros o significado daquilo. Eu e meus amigos sabíamos o que se passava. Mas, sabe como é; bico de lacre. Entramos logo em seguida por um corredor estreito e mal iluminado que dava numa grande sala onde ficavam duas escrivaninhas - provavelmente para os carcereiros - diante de várias celas. Um dos cubículos estava ocupado. Lá estavam o Silveira e um outro sujeito que não me lembro mais o nome. Os dois estavam num misto de espanto, vergonha e medo estampado em suas caras cinzentas, expostos assim como animais num zoológico.
      O Barretão faz um discurso humilhante tanto para os reclusos como para o resto de nós. “Discurso”. Um eufemismo. Definiria melhor como uma diatribe cheia de ameaças e referências nada lisonjeiras às nossas capacidades físicas, mentais e até mesmo sexuais... Dez minutos daquela porcaria. Ou dez mil? Tanto faz. Me pergunto qual a necessidade disso. Já não foi o suficiente os caras terem sido capturados em casa, diante da família e da vizinhança? Serem xingados dos pés à cabeça, apanhar um bocado e postos a ferros? Até entendo que os moleques tinham feito uma baita merda. Mas acho que a instituição passou dos limites. Até porque as ofensas do sargento também eram dirigidas a nós, que nada tínhamos a ver com a decisão idiota dos dois. O problema é que - pelo menos na teoria - na cultura militar não existe essa de causa e consequência a nível individual. Tudo é coletivo, para o bem ou para o mal e blá blá blá, blá blá blá... Como eu disse, isto é na te-o-ri-a, porque na prática simplesmente não é assim. Quer um exemplo? Quantos soldados morrem por uma decisão errada de um comandante? Se eles falham, a culpa lhes é atribuída por não terem tido “suficiente espírito de luta”. Se eles cumprem a missão, seu comandante é capaz, audaz, tenaz e todos os “az” que se puderem encontrar no “Houaiss”... Sacaram? Se pensarmos bem, nas Forças Armadas as coisas funcionam mais ou menos como na política. Quando as coisas vão bem, o governo leva o crédito. Quando vão mal, o povo é que não soube escolher(como se houvesse mesmo escolha...)...
      Quase caio de costas quando retorno a mim. Sentindo aquele delicioso perfume, mal posso acreditar em meus olhos.
      - Oficial no recinto! - ordena o jagunço meio que se engasgando, talvez por ter de engolir parte da sua homília.
      - À vontade! - ordena a Tenente Kayla, antes mesmo da posição de sentido.
Noto que caminha com passos rápidos e decididos. Por um instante, seus olhos se cruzam com os meus. E nesse momento, brilham. Sua expressão é que não estava nada amigável. A indignação estampada em sua face me fez ver um lado seu que não conhecia. Ela para em frente ao sargento, olha em volta e diz calmamente:
     - Saiam todos.
O jagunço olha incrédulo para aquela oficial que tinha a metade do seu tamanho e ordena num tom de voz definitivamente contrariado:
      - Ouviram a tenente. Andando!
Antes de ele nos dar qualquer outra instrução, ouvimos a Kayla lhe ordenar:
      - Barreto, gostaria que se apresentasse em minha sala na quarta-feira pela manhã, com a súmula da ocorrência em mãos.
Como que atingido por um raio, o sargento olha para a tenente, estufa o peito num longo suspiro e responde, com a cara mais amarrada que conseguiu fazer:
     - Sim, senhora.
Olha para nós e ordena:
     - Área do cerimonial. Vão!

Caráleo, mano!”

Todos os meus ossos sacolejam numa enorme gargalhada “pra dentro”. Que diabos foi aquilo? Noooooossa! Que invertida do cacete, ainda mais na nossa frente!! Bom, é como se diz; “Quem com ferro fode, com ferro será fodido...”

Toma, palhaço! Espero que responda a uma sindicância por excessos na disciplina. Será? Não viaja! Muito difícil...”

      Em forma aonde nos foi mandado, nos olhamos todos com cara de quem está se divertindo à beça com a situação. Não era todo dia que víamos um de nossos algozes ser contido, pra se dizer o mínimo. Só não passamos disso por motivos mais do que óbvios. Enfim, agora é só esperar o desfecho da história. Tirei duas conclusões deste episódio.
A primeira é a que eu já desconfiava: O jagunção era mesmo um sádico, que ia além do regulamento no intuito de nos “instruir”. Que aquilo era o seu passatempo pessoal, uma forma de se auto afirmar – na minha concepção – rebaixando os demais assim de garantir psicologicamente a sua posição.
A segunda é que tudo tem limites, mesmo dentro de um exército com dogmas carcomidos e mentalidade do século 19 - como o nosso - onde subalternos podiam ser chicoteados pelos superiores sob qualquer pretexto. Dificilmente este procedimento poderia promover um saudável “esprit de corps” tão necessário a uma Força Armada moderna, eficiente e realmente preparada.

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