expr:class='"loading" + data:blog.mobileClass'>

terça-feira, 12 de julho de 2016

Crônicas de um recruta - Parte 38

     Olá, amigos deste blog!

     Mais uma parte desta aventura. Nesta, nosso amigo vai para a sua primeira aula de defesa pessoal, entre outras coisas...
     Vamos ler?



38

      Retorno para o auditório onde estava sendo ministrada a instrução teórica de armamento. Por alguma razão desta vez não era o cabo Maciel o instrutor mas sim um sargento chamado Franco. Jovem, com cara de recém formado na EsSA. Sotaque mineiro típico, com seu jeito todo peculiar de falar. Ainda desta vez não foi prática porque, sabe como é; imagina soltar nas mãos de um bando de “cabaços” igual a nós armas com aquele poder de fogo. Nisso estavam certos. No passado já aconteceram grandes problemas, segundo fiquei sabendo depois. Inclusive pelo menos um caso em que um recruta atirou sem querer no próprio rosto ao limpar o fuzil. Se considerarmos que um projétil de 7.62 transforma em geleia tudo o que está numa amplitude de 50 vezes o seu diâmetro, dá para vocês imaginarem o que sobrou da cabeça do infeliz.
     Seja como for, não consegui me concentrar. Aquela manhã foi tão inusitada, tão agridoce que minha mente está até agora sob o efeito das adrenalinas. Tanto da “boa” como da “ruim”. Os pensamentos se dividem entre o medo das consequências daquele incidente infeliz e a agradabilíssima hora e meia que passei com a morena. Assim, não retive nada de informação da sessão, por mais que o assunto me interessasse. Quem nunca sonhou em bancar o Rambo pelo menos uma vez na vida? Bom mesmo será quando as aulas forem práticas.
      O resto daquela manhã escoou depressa. Novamente estou com meus amigos no rancho. Conto tudo o que me aconteceu. Suas reações vão da inveja(boa), pelo fato daquela deusa - eles também babam por ela, anote-se - prestar atenção em mim até o ódio incontido por aquele lixo designado como “porteiro” do pavilhão da CCS. Também se divertem com a minha estupidez. Relevo o que dizem por dois motivos. Primeiro, são meus amigos. Lógico. Segundo; Estão cobertos de razão. Quem tem as palavras e argumentos mais cortantes é o Vinícius, em sua sinceridade que soa como ofensa para quem não conhece a cultura eslava. Admito que fiquei um tanto irritado. Mas prefiro a sinceridade deles às palavras macias de um traiçoeiro.
      À tarde fomos conduzidos para o vestiário e na sequência para a área de esportes no interior da pista de atletismo. Teríamos a primeira instrução de luta corporal e técnicas de defesa pessoal. Já estavam estendido no chão uma série de tatames velhos e puídos. Um oficial nos esperava. O instrutor era um negro gigantesco. Dois metros de altura. Um Schwartznegger de ébano:
      - Boa tarde a todos! Sou o primeiro tenente Santos, comandante do 2° pelotão da 3ª Companhia de Fuzileiros. - se apresenta, numa voz bastante parecida com a do Terry Crews.
      - Hoje irei iniciá-los na arte de combate corpo a corpo e técnicas de defesa pessoal. Antes de começar, gostaria de saber se algum dos senhores possui qualquer tipo de noção sobre o tema.
Silêncio momentâneo. Por fim, um dos nossos levanta a mão. Era o Linhares. O tenente pergunta:
      - Seu nome recruta?
      - Linhares, senhor! - responde o piruão.
      - À frente, Linhares! - chama o instrutor.
Obedecendo ao comando, ele se levanta - pois estávamos sentados no chão com as pernas cruzadas - e vai até onde foi chamado.
      - Praticou artes marciais alguma vez?
      - Sim, senhor. Ainda pratico.
      - Qual delas?
      - Sou faixa amarela em judô.
      - Ótimo. Dê-nos uma breve demonstração dos seus conhecimentos. - replica o tenente, dando dois passos atrás.
O “reco” põe-se em posição de “migi shizentai”, que é o nome da posição com o pé direito à frente. Em seguida, começa uma série de movimentos defensivos. Depois dá outra, só que desta vez de ataque. Chutes e socos diversos distribuídos ao vento. Imediatamente me vem à mente as tardes de minha pré adolescência, quando eu jogava no fliperama um jogo chamado Street Figther II com alguns vales-transporte extras que ganhava com meus bicos...
O Linhares acaba seu show e faz para o Santos a típica saudação do judô. Nós ficamos realmente impressionados com o que ele mostrou que sabia. Achava que ia dar vexame, mas me enganei. O tenente fala:
      - Boa demonstração. Boa técnica, Linhares...
O cara estufa o peito. Mas dura pouco a sua glória porque, rápido como um raio, o instrutor o ataca. Em questão de segundos recebe uma série de golpes e antes que se dê conta do que está acontecendo, já está beijando o tatame e gemendo como um bebê.
      -...mas não o suficiente para um combatente da infantaria! - completa.
E continua:
      - Lição número um: Nunca confie demais em suas habilidades. Nunca conclua que já sabe o bastante! Esteja sempre alerta, o inimigo é imprevisível!
Ao dizer isso, estende a mão para a ruína humana em que se transformou o Linhares. E o levanta, arrematando:
      - Volte para o seu lugar.
Ele obedece, com o ego muito mais dolorido que seu corpo. Em seguida, nova pergunta:
      - Alguém mais?
Desta vez, ninguém - mesmo que soubesse - ousaria se apresentar.
Apesar das dores musculares que a galera estava sentindo, todos estavam participando com entusiasmo do exercício. Ser pago para aprender pelo menos o básico de artes marciais é muito melhor do que ter de pagar. Além do mais, dá autoconfiança e pra se gabar também...
A quarta-feira finalmente termina. Pouco antes da instrução acabar, chega-se a nós o sargento de dia e, com a devida permissão do tenente Santos, nos comunica:
      - Atenção recrutas para a programação desta quinta-feira, 24 de março de 1997! Manhã, das 0800 horas às 1200 horas: Ordem Unida. Tarde, das 1330 horas até as 1700 horas: Treinamento Prático Profissional na especialidade Limpeza e Conservação...

Horas, horas, horas! Vira o disco! Vai ficar repetindo isso o tempo todo? Que saco!”

Um discreto muxoxo percorre o ar. O “arauto” faz de conta que não escuta - talvez porque não está no comando da ralé ou por estar diante de um oficial - e prossegue:
     -...Noite: Noções de Primeiros Socorros, das 1900 horas às 2200 horas. Excepcionalmente hoje não haverá instrução noturna, a fim de que os senhores possam proceder com a higienização do seu fardamento e demais cuidados para a inspeção de amanhã. Isso é tudo. Senhor! - diz, olhando para o oficial: 
          - Obrigado, Pereira. - e, dirigindo-se a nós: 
          - Alguma dúvida?
          - Não, senhor! 
          - Ótimo. Dispensados!
      São cinco da tarde em ponto. Descida da bandeira, depois chuveiro. No nosso pavilhão, há uma espécie de lavanderia coletiva anexa ao vestiário. Mas nada de máquinas de lavar. Só tanques mesmo, uma porção deles. Lá nos acotovelamos para lavar nosso fardamento da melhor maneira possível. Corro para ser um dos primeiros por que senão terei de ficar esperando um tempão, já que não há um número suficiente para que todos possam usá-los simultaneamente. Também, quero deixar meus “panos” secando e correr para o rancho jantar. E de mais a mais, não estou nem um pouco a fim de ficar até tarde da noite com as mãos na água, dado o frio miserável que já está fazendo nesta época. Não há varais suficientes. Assim, os que chegarem primeiro estendem seus uniformes. Os demais são obrigados a torcê-los ao máximo possível e pendurá-los nas portas de seus armários em cabides. Tétrico. E o pior; ai do sujeito que deixar o piso do vestiário molhado. O rondante que pegar chão lambuzado vai encher o saco do sujeito, para dizer o mínimo.
      A desgraça é que ainda estamos sem uniforme de inverno e apenas com o par de coturnos e as duas mudas de fardamento originais recebidos no primeiro dia efetivo. Isto é muito pouco para quem está – como nós – em regime de internato, dado o esforço físico que fazemos, os exercícios altamente “sujantes” a que somos submetidos e o tempo exíguo de que dispomos para a higienização deles. E tem mais: não temos como passá-los e, o “caboclo” que estiver com a farda amassada na parada diária pode ser punido com uma sentença que poderia variar de esporro - no mínimo - até um ou dois dias no xilindró. Assim, a galera improvisava nas emergências. Eu mesmo aprendi com um “antigo” camarada como matar dois coelhos com uma cajadada só; secar e passar. O procedimento é muito simples; arrume algumas caixas de papelão, estenda-as por cima do estrado e coloque o uniforme cuidadosamente estendido. Depois é só colocar o colchão por cima e dormir o sono dos condenados. Tcharán!!! No dia seguinte, é só levantar e se vestir com o uniforme seco, quentinho e - o que é melhor - passado como se fosse a ferro.
      Mais tarde vim a saber que o regulamento previa que se fosse fornecido aos recrutas - já na primeira prova de uniforme - quatro conjuntos de fardamento de combate de verão, dois conjuntos de uniforme de inverno, três pares de coturnos e dois conjuntos de farda de passeio completo após o treinamento básico. Além disso, dois conjuntos para a prática de TFM em malha, dois “pega-louco”(uma espécie de meia calça masculina de lã) e dez pares de meias, sendo cinco para o verão e cinco para o inverno. Por aí se vê em que situação estávamos. A desculpa de sempre era a “baixa dotação orçamentária das Forças Armadas” mas, acontece que acabei vendo por acaso algumas coisas que não podem ser desvistas... Melhor deixar pra lá.

Nenhum comentário:

Postar um comentário