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sexta-feira, 8 de julho de 2016

Crônicas de um recruta - Parte 36

     Olá amigos do blog!

     Hoje, o nosso amigo tem um importante compromisso. Qual é, e como vai ser?

     Vejamos;



36

      Quarta-feira. Geada ainda mais forte do que na véspera. Está tudo branco. Até as poças d'água que haviam no pátio de lavagem das viaturas congelaram. A água nos canos expostos congelou, trincando-os. Serviço extra para o pessoal do PO(Pelotão de Obras, para os leigos). A neblina está tão espessa que a visibilidade é inferior a 50 metros. Clima péssimo para a recrutagem, porque - diabos! - ainda não recebemos nossos uniformes de inverno. O responsável pela “Almox” pelo menos deu uma justificativa: O material já está estocado no 5° Batalhão de Suprimentos e em aproximadamente dois dias será disponibilizado. Sei. Deve ser em aproximadamente dois dias antes do fim da eternidade. Até lá, se as coisas continuarem desse jeito, trincaremos os dentes de tanto batê-los. Misericordiosamente, nos foi permitido não dobrar as mangas da gandola. Estou moído. Todos os músculos do meu corpo doem. Para piorar, estou morto de sono. Dormi pouco e mal. Depois do café e da parada diária ouço o Sargento Adjunto chamar-me:
      - Recruta Flávio, à testa!

Eita ferro! Que é que há?”

Receosamente, levanto a mão, respondendo:
      - Aqui, senhor!
      - À testa, eu disse! Vou ter de desenhar? - retruca ele.
Mal humorado, me arrasto até lá, ressabiado como um rato na entrada da toca numa casa cheia de gatos. Logo que me posto, recebo a ordem:
     - Apresente-se no pavilhão da CCS(o anteriormente descrito prédio da administração). Sua presença foi requisitada pela Tenente Kayla. - diz o oficial de dia, Tenente Matucheski.
      - Sim senhor. - respondo. Um arrepio percorre todo o meu corpo. Já tinha me esquecido que a primeira entrevista com ela era hoje...
      Para os leigos(palavrinha escrota, mas enfim...) a CCS é a Companhia de Comando e Serviço. Bem, “mas o que significa isso?” vocês podem me perguntar. O Negócio funciona assim. Um Batalhão é uma subunidade de um Regimento(que pode ser constituído por até 5 Batalhões, de acordo com a doutrina do EB). É composto por até 5 unidades menores, chamadas de Companhias. Cada Companhia tem sua função e emprego específicos. Por exemplo, o 20° BIB era na minha época composto por 5 Companhias, sendo 3 de Fuzileiros, uma de Armas de Apoio, - geralmente Morteiros – e uma de Comando e Serviço. Via de regra é comandada por um capitão. Assim, abreviadamente, existiam a 1°, a 2° e a 3° CF's, a CAA e a CCS. Cada companhia é composta por 4 Pelotões. Por sua vez, cada pelotão - geralmente comandado por um segundo tenente - é composto por 3 Grupos de Combate mais um Grupo de Apoio. Cada grupo de combate é composto por 8 soldados comandados por um terceiro ou segundo sargento. Viram que legal? Não. Não é muito, admito. Mas necessário. Toda esta explanação deve ter feito cair por terra alguns conceitos de vocês, certo? Afinal, não se trata apenas de uma massa de homens de verde atirando para tudo quanto é lado. Há ordem no caos...
      Seguindo: Bato continência e sigo para a minha designação. Pois é. A tremedeira era um misto de frio e excitação, uma sensação difícil de explicar. Olhando para trás, hoje vejo que meu comportamento era o de um adolescente sofrendo de paixonite aguda não correspondida. Pra ser sincero, sinto-me um idiota ao escrever isto. Mas firmei um compromisso comigo mesmo de ser o mais honesto e transparente possível neste relato. Lá chegando, apresento-me para o “sentinela” na escrivaninha situada na lateral direita do hall. Para meu azar, lá estava o milico que afrontei no dia da incorporação. Dane-se. Em que ele pode me prejudicar? O máximo que pode acontecer é fazer cara de fome ou dirigir-me palavras ásperas. Nada mais:
      - Recruta Flávio, dirija-se à sala da Tenente Kayla. Suba as escadas e no primeiro pavimento vire à esquerda, terceira porta à direita. Entre sem bater, entendido?
        - Sem bater? - pergunto, desconfiado.
        - São as ordens, recruta!
        - Ok. - respondo, pondo-me em movimento.
Estou tão sonolento que mal presto atenção ao que acontece à minha volta. Sigo maquinalmente as instruções do “antigo”. Abro a porta que me foi indicada e, quando me dou conta de onde realmente estou, sinto o sangue congelar nas veias.

Filho de uma grandessíssima puta!”

Tremendo como vara verde, tenho presença de espírito apenas para retirar imediatamente a “tampa do lixo” e ficar em posição de sentido, olhando para o chão. Estou nada menos do que diante do comandante do “20” e todo o seu estado-maior, interrompendo uma reunião...
      - O que por todos os demônios significa isso, recruta? - pergunta o coronel, perplexo.
Meu maxilar está travado. Não consigo abri-lo. Seria mesmo inútil. Não conseguiria articular qualquer palavra. O terror se apossou de mim.
      - Responda! - insiste, enquanto nove pares de olhos fitam-me.
A muito custo, consigo abrir a boca. Mas a voz insiste em não sair. Então, o capitão Sampaio vem em meu socorro. Dirige a palavra ao coronel:
      - Senhor?
      - Fale, Sampaio. Rápido!
     - Senhor, acho que houve um engano. Não é possível que alguém em sã consciência fizesse uma temeridade destas! Peço permissão para conduzir o rapaz lá para fora. Talvez ele consiga me explicar o que houve.
O comandante pensa por dois segundos e diz:
     - Está certo. Dois minutos, Sampaio. Tire este recruta daqui! Já!
     - Sim, senhor.
Imediatamente se levanta, presta continência aos superiores na sala e me puxa pela manga da gandola já que - aparvalhado como estou - perdi totalmente o senso de qualquer coisa que fosse. Já no corredor o bom capitão pragueja, olhando em volta:
      - Onde está o maldito ordenança? Por que ele não está de guarda na porta?
E olhando para mim:
      - Rapaz, você tem dois minutos para escapar de ficar na jaula pelas próximas três semanas, no mínimo. Pode começar!
     Graças à confiança que ele me incutiu consegui me recompor aos poucos, narrando resumidamente como fui parar ali. Imediatamente, ordena-me a acompanhá-lo, a fim de me conduzir ao lugar certo. Ele bate na porta e entra, no que o sigo. A Kayla já estava de pé e lhe presta continência:

      - À vontade, tenente. Trouxe-lhe este extraviado. Instrua-o sobre como preencher a sua defesa no BO. Preciso dele na minha mesa ainda hoje, a fim de apresentar justificativa ao coronel, entendido?
    - Sim, senhor. Algo mais? - responde ela, levantando graciosamente uma das sobrancelhas, em discreta perplexidade enquanto olha-me de canto de olho.
       - Como ficará em breve ciente de todo o caso, investigue e me preste relatório ainda hoje. Anexe nele a defesa do recruta. Preciso de todo o subsídio de que puder dispor porque assumi um risco ao me envolver no caso. Isso é tudo.
A Kayla lhe presta continência mais uma vez, no que ele se retira, sem nem mesmo fechar a porta, apressado como estava:
       - Feche a porta, por favor. - ordena.
Eu a fecho:
     - Sente-se. - diz, num tom de voz diferente do que eu estava acostumado a ouvir dela, apontando para uma poltrona que só agora eu reparara estar na sala.
Ela dá a volta e senta-se na outra em frente à minha. Cruza as pernas e une os dedos indicadores, inquirindo de um jeito a mim encantador:
      - Flávio, Flávio, Flávio! O que foi que aconteceu?
Ainda olhando para o tapete no chão, suspiro fundo e me explico, sentindo-me um grandessíssimo idiota por não ter prestado atenção suficiente nas instruções daquele lazarento;
      - Sinto-me um imbecil, senh... Kayla. E pior, vou ter de pagar caro por isso.
    - Não se desvalorize, Flávio - e emenda - Talvez não. Creio que o relatório, mais os testemunhos meu e do capitão Sampaio serão o suficiente para livrá-lo deste problema. Se deve ser punido por algo, que seja apenas por não ter tido suficiente atenção para ver que estava se dirigindo para o lugar errado. Mas, mesmo isso pode ser creditado na conta da inexperiência. Perdoe-me pela pergunta, Flávio mas, enfim, vou fazê-la; Por que você não conseguiu enxergar a placa indicativa da sala do comandante? Como foi possível?
Esta pergunta foi feita com todo o tato, para que meu ego não ficasse ainda mais ferido. Mesmo assim doeu. Respondo com a contrariedade estampada no rosto e na voz:
      - Com todo o respeito tenente; Ontem tive um dia extenuante seguido de uma noite péssima. Isso sem contar que estou com distúrbios estomacais e portanto, não consigo repor adequadamente toda a energia gasta. Além do mais, fui formatado a não questionar ordens. Eu simplesmente as segui. Deu no que deu.
      Encolho os ombros, recostando-me novamente na poltrona e olhando fixamente em seus olhos. Ela nada diz. Imita meu gesto, unindo seus indicadores embaixo do queixo, retribuindo o olhar. Noto que os cantos de sua delicada boca levantam-se em um discretíssimo sorriso. Foram apenas alguns segundos. Os mais deleitosos para mim até aqui...

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