Olá amigos do blog!
Hoje, o nosso amigo tem um importante compromisso. Qual é, e como vai ser?
36
Quarta-feira.
Geada ainda mais forte do que na véspera. Está tudo branco. Até as
poças d'água que haviam no pátio de lavagem das viaturas
congelaram. A água nos canos expostos congelou, trincando-os.
Serviço extra para o pessoal do PO(Pelotão de Obras, para os
leigos). A neblina está tão espessa que a visibilidade é inferior
a 50 metros. Clima péssimo para a recrutagem, porque - diabos! -
ainda não recebemos nossos uniformes de inverno. O responsável pela
“Almox” pelo menos deu uma justificativa: O material já está
estocado no 5° Batalhão de Suprimentos e em aproximadamente dois
dias será disponibilizado. Sei. Deve ser em aproximadamente dois
dias antes do fim da eternidade. Até lá, se as coisas continuarem
desse jeito, trincaremos os dentes de tanto batê-los.
Misericordiosamente, nos foi permitido não dobrar as mangas da
gandola. Estou moído. Todos os músculos do meu corpo doem. Para
piorar, estou morto de sono. Dormi pouco e mal. Depois do café e da
parada diária ouço o Sargento Adjunto chamar-me:
-
Recruta Flávio, à testa!
“Eita
ferro! Que é que há?”
Receosamente,
levanto a mão, respondendo:
-
Aqui, senhor!
-
À testa, eu disse! Vou ter de desenhar? - retruca ele.
Mal
humorado, me arrasto até lá, ressabiado como um rato na entrada da
toca numa casa cheia de gatos. Logo que me posto, recebo a ordem:
-
Apresente-se no pavilhão da CCS(o anteriormente descrito prédio da
administração). Sua presença foi requisitada pela Tenente Kayla. -
diz o oficial de dia, Tenente Matucheski.
-
Sim senhor. - respondo. Um arrepio percorre todo o meu corpo. Já
tinha me esquecido que a primeira entrevista com ela era hoje...
Para
os leigos(palavrinha escrota, mas enfim...) a CCS é a Companhia de
Comando e Serviço. Bem, “mas o que significa isso?” vocês
podem me perguntar. O Negócio funciona assim. Um Batalhão é uma
subunidade de um Regimento(que pode ser constituído por até 5
Batalhões, de acordo com a doutrina do EB). É composto por até 5
unidades menores, chamadas de Companhias. Cada Companhia tem sua
função e emprego específicos. Por exemplo, o 20° BIB era na minha
época composto por 5 Companhias, sendo 3 de Fuzileiros, uma de Armas
de Apoio, - geralmente Morteiros – e uma de Comando e Serviço. Via
de regra é comandada por um capitão. Assim, abreviadamente,
existiam a 1°, a 2° e a 3° CF's, a CAA e a CCS. Cada companhia é
composta por 4 Pelotões. Por sua vez, cada pelotão - geralmente
comandado por um segundo tenente - é composto por 3 Grupos de
Combate mais um Grupo de Apoio. Cada grupo de combate é composto por
8 soldados comandados por um terceiro ou segundo sargento. Viram que
legal? Não. Não é muito, admito. Mas necessário. Toda esta
explanação deve ter feito cair por terra alguns conceitos de vocês,
certo? Afinal, não se trata apenas de uma massa de homens de verde
atirando para tudo quanto é lado. Há ordem no caos...
Seguindo:
Bato continência e sigo para a minha designação. Pois é. A
tremedeira era um misto de frio e excitação, uma sensação difícil
de explicar. Olhando para trás, hoje vejo que meu comportamento era
o de um adolescente sofrendo de paixonite aguda não correspondida.
Pra ser sincero, sinto-me um idiota ao escrever isto. Mas firmei um
compromisso comigo mesmo de ser o mais honesto e transparente
possível neste relato. Lá chegando, apresento-me para o “sentinela”
na escrivaninha situada na lateral direita do hall. Para meu azar, lá
estava o milico que afrontei no dia da incorporação. Dane-se. Em
que ele pode me prejudicar? O máximo que pode acontecer é fazer
cara de fome ou dirigir-me palavras ásperas. Nada mais:
-
Recruta Flávio, dirija-se à sala da Tenente Kayla. Suba as escadas
e no primeiro pavimento vire à esquerda, terceira porta à direita.
Entre sem bater, entendido?
-
Sem bater? - pergunto, desconfiado.
-
São as ordens, recruta!
-
Ok. - respondo, pondo-me em movimento.
Estou
tão sonolento que mal presto atenção ao que acontece à minha
volta. Sigo maquinalmente as instruções do “antigo”. Abro a
porta que me foi indicada e, quando me dou conta de onde realmente
estou, sinto o sangue congelar nas veias.
“Filho
de uma grandessíssima puta!”
Tremendo
como vara verde, tenho presença de espírito apenas para retirar
imediatamente a “tampa do lixo” e ficar em posição de sentido,
olhando para o chão. Estou nada menos do que diante do comandante do
“20” e todo o seu estado-maior, interrompendo uma reunião...
-
O que por todos os demônios significa isso, recruta? - pergunta o
coronel, perplexo.
Meu
maxilar está travado. Não consigo abri-lo. Seria mesmo inútil. Não
conseguiria articular qualquer palavra. O terror se apossou de mim.
-
Responda! - insiste, enquanto nove pares de olhos fitam-me.
A
muito custo, consigo abrir a boca. Mas a voz insiste em não sair.
Então, o capitão Sampaio vem em meu socorro. Dirige a palavra ao
coronel:
-
Senhor?- Fale, Sampaio. Rápido!
- Senhor, acho que houve um engano. Não é possível que alguém em sã consciência fizesse uma temeridade destas! Peço permissão para conduzir o rapaz lá para fora. Talvez ele consiga me explicar o que houve.
O
comandante pensa por dois segundos e diz:
-
Está certo. Dois minutos, Sampaio. Tire este recruta daqui! Já!
-
Sim, senhor.
Imediatamente se levanta, presta continência aos superiores na sala e me puxa pela manga da gandola já que - aparvalhado como estou - perdi totalmente o senso de qualquer coisa que fosse. Já no corredor o bom capitão pragueja, olhando em volta:
Imediatamente se levanta, presta continência aos superiores na sala e me puxa pela manga da gandola já que - aparvalhado como estou - perdi totalmente o senso de qualquer coisa que fosse. Já no corredor o bom capitão pragueja, olhando em volta:
-
Onde está o maldito ordenança? Por que ele não está de guarda na
porta?
E
olhando para mim:
-
Rapaz, você tem dois minutos para escapar de ficar na jaula pelas
próximas três semanas, no mínimo. Pode começar!
Graças
à confiança que ele me incutiu consegui me recompor aos poucos,
narrando resumidamente como fui parar ali. Imediatamente, ordena-me
a acompanhá-lo, a fim de me conduzir ao lugar certo. Ele bate na
porta e entra, no que o sigo. A Kayla já estava de pé e lhe
presta continência:
-
À vontade, tenente. Trouxe-lhe este extraviado. Instrua-o sobre como
preencher a sua defesa no BO. Preciso dele na minha mesa ainda hoje,
a fim de apresentar justificativa ao coronel, entendido?
-
Sim, senhor. Algo mais? - responde ela, levantando graciosamente uma
das sobrancelhas, em discreta perplexidade enquanto olha-me de canto
de olho.
-
Como ficará em breve ciente de todo o caso, investigue e me preste
relatório ainda hoje. Anexe nele a defesa do recruta. Preciso de
todo o subsídio de que puder dispor porque assumi um risco ao me
envolver no caso. Isso é tudo.
A
Kayla lhe presta continência mais uma vez, no que ele se retira, sem
nem mesmo fechar a porta, apressado como estava:
-
Feche a porta, por favor. - ordena.
Eu
a fecho:
-
Sente-se. - diz, num tom de voz diferente do que eu estava acostumado
a ouvir dela, apontando para uma poltrona que só agora eu reparara
estar na sala.
Ela
dá a volta e senta-se na outra em frente à minha. Cruza as pernas e
une os dedos indicadores, inquirindo de um jeito a mim encantador:
-
Flávio, Flávio, Flávio! O que foi que aconteceu?
Ainda
olhando para o tapete no chão, suspiro fundo e me explico,
sentindo-me um grandessíssimo idiota por não ter prestado atenção
suficiente nas instruções daquele lazarento;
-
Sinto-me um imbecil, senh... Kayla. E pior, vou ter de pagar caro por
isso.
-
Não se desvalorize, Flávio - e emenda - Talvez não. Creio que o
relatório, mais os testemunhos meu e do capitão Sampaio serão o
suficiente para livrá-lo deste problema. Se deve ser punido por
algo, que seja apenas por não ter tido suficiente atenção para ver
que estava se dirigindo para o lugar errado. Mas, mesmo isso pode ser
creditado na conta da inexperiência. Perdoe-me pela pergunta, Flávio
mas, enfim, vou fazê-la; Por que você não conseguiu enxergar a
placa indicativa da sala do comandante? Como foi possível?
Esta
pergunta foi feita com todo o tato, para que meu ego não ficasse
ainda mais ferido. Mesmo assim doeu. Respondo com a contrariedade
estampada no rosto e na voz:
-
Com todo o respeito tenente; Ontem tive um dia extenuante seguido de
uma noite péssima. Isso sem contar que estou com distúrbios
estomacais e portanto, não consigo repor adequadamente toda a
energia gasta. Além do mais, fui formatado a não questionar ordens.
Eu simplesmente as segui. Deu no que deu.
Encolho
os ombros, recostando-me novamente na poltrona e olhando fixamente em
seus olhos. Ela nada diz. Imita meu gesto, unindo seus indicadores
embaixo do queixo, retribuindo o olhar. Noto que os cantos de sua
delicada boca levantam-se em um discretíssimo sorriso. Foram apenas
alguns segundos. Os mais deleitosos para mim até aqui...
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