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sexta-feira, 22 de maio de 2015

Crônicas de um recruta - parte 14

Olá, pessoal.

Vamos continuando com a narrativa, que está ficando cada vez mais interessante. Conforme vimos no "capítulo" anterior, o Flávio já não está mais sozinho. Acontece que o "reco" teve uma ideia....

Será que vai dar certo?

Vejamos...




14

     Quando nos perfilamos no pátio em frente do "almox" o sol já tinha aparecido, visto que a neblina da manhã tinha se dissipado. Um céu azul sem nuvens se revela em toda a sua extensão. Meados de março em Curitiba faz um tempo meio doido(e em que época do ano não faz?). Logo cedo, um frio de rachar. Mas ali pelo meio da manhã o nevoeiro some de um minuto para outro, e um sol de trincar mamona se faz presente. Em questão de minutos a pessoa é obrigada a tirar praticamente toda a roupa de frio e ficar vestida com no máximo uma camiseta meia estação, ficando com as mãos mais cheias do que cabideiro de guarda-roupa feminino. É por isso que se vê tantos "nego" por estas bandas que só andam de mochila. Por causa dessas mudanças bruscas de clima se tem de levar a casa nas costas, igual a um caramujo.
     Ficamos lá, torrando enquanto esperávamos os outros. Não sei porque, mas o meu grupo foi o único que executou o processo ligeirinho. Comecei a escutar uns berros vindos lá de dentro, e logo concluo que mais neguinho "cagou o pau". Olho para o russinho. Ele ainda estava vermelho e murcho. Pergunto:
     - Eh! Vinicius! Que que há, velho? Ainda tá aborrecido? Esquece isso, cara!
     - Tu fala isso porque não é no teu rabo que vai estourar essa granada...
    - Que nada, meu chapa. Acho até que o sargentão já se esqueceu. Esquenta com isso não...E depois, ele não vai poder te punir porque nós ainda não recebemos nenhuma instrução. Tecnicamente, só podemos ser punidos após sabermos das coisas e deliberadamente desobedecermos, sacou? A gente ainda não sabia...
Ouvindo isso, o rosto dele muda:
     - Sabe que você tem razão? Acho que não deve mesmo haver razão para se preocupar.
O Jackson entra no papo:
     - É isso aí. O que o Flávio disse tá bem certo.
Nisso, um outro gaiato vê o sargento sair do prédio e soa o alarme:
     - Psiu, cambada! O "cabeça quadrada" tá vindo aí!
Era seguido pelos outros quinze que colocaram seus uniformes depois de nós. Finalmente, ele se posta em frente ao grupo de 25 que ainda estavam em trajes civis e ordena:
     - Segundo grupo, entrando no "almox". E rápido, que isso já está demorando demais!
Em seguida, ele dirige sua atenção ao já fardados:
    - Quanto a vocês, silêncio absoluto! Se eu ouvir um só pio os senhores verão o que se pode fazer a um "reco". - e completa, se aproximando do Vinícius - Eu e você vamos acertar as coisas daqui a pouco.
    Dizendo isso, vira-se e dá mais alguns berros, tangendo aquele gado ainda não marcado. Escuto o russinho a resmungar baixo, algo a princípio ininteligível, me olhando com aquela cara de "você estava errado, sabichão" :
     - Svyatoye der'mo!
     - Que diabo é isso, Vinicius? Tá falando em marciano? - pergunto, debochado.
     - Não, ô cavalo. É russo mesmo.
     - E que raios significa?
     - Puta que o pariu! - pragueja.
     - Pô cara, desculpa! Eu não queria te deixar mais nervoso.
     - Não, não é isso. É o que significa. Puta que o pariu. - responde ele, descontraindo-se. Achou divertida a minha ignorância.
Aí eu abro aquele sorrisão maroto. Poderia jurar que naquele momento apareceu uma lampadinha no alto da minha caixola. E falei pra ele:
     - Velho, que grande ideia você me deu!
     - Ideia, eu? Que ideia?
    - É o seguinte; você, eu, o Sandro e o Jackson já estamos praticamente numa panelinha, não é?
     - Eu diria que sim. E daí?
Ao ouvirem seus nomes, o Sandro e o Jackson apuram as orelhas:
     - Você é fluente no idioma russo?
     - Sim. Em casa se falam os dois.
   - Beleza! Então se os nossos dois colegas toparem, que acha de ensinar russo pra gente? Assim, essa língua vai ser o nosso código particular. Que acham? - pergunto, me dirigindo também para os outros dois.
     - Eu topo. - respondeu, de chofre o Sandro.
    - Mas deve ser uma língua difícil pra cacete! - questiona o Jackson, fazendo cara de nojo.
     - Pode até ser. Mas vai ser algo extremamente valioso nesse lugar onde viemos parar. E além do mais, o que que vai ser fácil a partir de agora? É como diz o ditado, meu camarada: "Quem tá no inferno que sente no colo do capeta". Garanto a vocês que vai ser bem mais fácil do que todo o resto. Que me dizem? - digo, tentando convencê-los.
     - Ensinar não vai ser problema nenhum. Por mim, tudo certo. - diz o russinho.
     - Sei não... - reluta ainda o 'armário".
     - Ah, velho. Que que há? Vai valer a pena! - raciocino.
     - Está bem. Mas vai ser broca pra mim. - diz, finalmente se convencendo.
     - Fechado. Temos um acordo.
     Sem mais assunto, nos recolhemos novamente ao silêncio. O sol fazia o seu trabalho com afinco. Em questão de minutos, começo a suar que nem um porco. Pelo menos estou com o boné na cuca. Onde está o resto dos "reco", meu Deus do céu? Será que é tão difícil assim vestir uma simples farda?
Apenas após dez minutos e uns quinze berros depois, a tropa está toda alinhada. O "véio zuza" (sargento Oliveira) se posta em nossa frente e ordena:
     - Prestem atenção, cambada de ogronômios! Quando eu der o comando frente para a retaguarda, vocês virarão e ficarão de frente para onde viemos, entendido?
      - Sim, senhor!
      - Muito bem! FRENTE PARA A RETAGUARRRDAAÁ!
Nos viramos, como ordenado. Mas, pela falta de prática, teve alguns fulanos que se enroscaram nos próprios pés. Apesar de estar a uns bons cinco metros, ouço o sargentão bufar. Ele passa à nossa frente e ordena:
   - ORDINÁRIO, MAAAARCH! - e coordena - Esquerda, direita, esquerda, direita, esquerda, direita...
Nos conduz novamente para a área do cerimonial, onde nos posta de frente para o brasão da infantaria, que consiste em dois fuzis cruzados com uma granada no meio. Depois de satisfeito com o nosso posicionamento, ele se acerca do Vinícius:
     - Pokronkay! Venha até aqui!
O meu amigo revira os olhos, não sei se porque o "véio zuza" lembrou-se dele ou por pronunciar seu "nom de guerre" errado pela segunda vez. Ele sai da formação e se dirige para onde é chamado. Se posta diante do sargento, que diz:
    - Hoje, você vai aprender a lição número um, recruta. A mais fundamental de todas, chamada I-DEN-TI-FI-CA-ÇÃO. Paga dez pra mim, militar. E JÁ!
Como sujeito esperto que era, o russinho sacou na hora que era para fazer dez flexões. Posicionou-se e nem bem fez a primeira quando o carrasco - digo, instrutor - avançou alguns passos, de modo que seus coturnos ficassem encostados no nariz do Vinícius, quando ele se abaixava ao concluir a flexão de braço:
     - E a lição de identificação de hoje - continua - consistirá em determinar o fabricante do meu par de coturnos, seu monstro! E olha que eu estou lhe dando uma excelente oportunidade, pelo simples fato de você estar assim tão próximo deles. Diz aí, militar. Que marca é?

"Será que este sádico vai mandar o colega lamber as botas dele também?"

     Fico imaginando como deveriam estar as suas mãos com aquele sol, naquele patio asfaltado. Afinal, mesmo de coturno eu já estava sentindo os meus pés quentes... Por causa do suor que lhe escorria pelo rosto, seus óculos escorregaram, caindo sobre as botas do sargento. Vendo isso, o "rajado" diz:
     - Tira este troço daí, seu moscocéfalo! E sem tirar a outra mão do chão! Se errar, vai pagar em dobro!
Fazendo um grande esforço , o Vinicius fica apoiado apenas em uma das mãos e o pega. Mas não coloca os óculos de volta na cara. Simplesmente joga-o para um lado. Apoia rapidamente a mão que o pegou novamente no chão e continua o pagamento do castigo.
     - CONTANDO! - berra o instrutor - UM...
Nos entreolhamos. O guri já tinha feito três flexões. Que sacanagem!
    - ...DOIS...TRÊS...QUATRO...Agora parado! - ordena, fazendo o russinho ficar com os braços esticados. E continua - Qual a marca do meu equipamento, recruta?
     - Não...não... vi etiqueta...alguma, senhor... - diz o Vinícius, ofegante.
     - Então continua aí, militar! Vai fazendo até descobrir! CINCO...SEIS...SETE...
Esta sessão toda dura mais uns dez minutos. Finalmente, o Oliveira ordena que meu amigo se levante:
     - Está OK, por hora. Volte para o seu lugar na formação recruta. Acelerado!
    - Permissão para...pegar meus...óculos, senhor. - diz, com meio metro de língua pra fora.
    - Concedida. VAI!
Ele se abaixa e os pega, indo para a sua "vaga". Olhando discretamente em volta. Vejo olhos esbugalhados e bocas esgarçadas. Se o homem queria nos intimidar, definitivamente ele conseguiu.

2 comentários:

  1. Amei suas cronicas, visitarei sempre seu blog!!!
    Abraços ;)

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    Respostas
    1. Olá, Vanessa!

      Seja bem vinda! Fico feliz que tenha gostado. sinta-se à vontade para voltar sempre que desejar.

      Abraço!

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