Bom dia, boa tarde, boa noite, amigos leitores.
No primeiro post deste blog, uma das propostas que estabeleci era a postagem de contos...
"Sim, nos lembramos disso."
Ótimo, acontece que literariamente falando, estas crônicas deixaram há algum tempo de se caracterizarem como tal(mais ou menos ali pela parte 3...).
"Não entendi..."
Explico: Um conto é uma estória curta, com um começo, meio e fim muito bem definidos em um texto curto. Se vocês notaram meus nobres, a narrativa do Flávio se estendeu muito além disso, com vários "picos" e resoluções ao longo do "trajeto". E, como devem perceber, até agora ele ainda não é um recruta. Ainda está - como direi? - "em processo". Dito desta forma, a proposta inicial nesse caso se modificou. A história ganhou vida própria e está seguindo o seu curso. Então, como o protagonista, ela se transformou(e ainda está em transformação). Assim, pode-se dizer que estes escritos estão tomando a forma de um livro de fato, com cada uma das partes sendo um "capítulo".
A proposta continua, mas, como eu tinha dito desde o princípio, não seria lá algo assim muito rígido.
"Mas, e os contos?"
Eles virão meus caros, tenham certeza disso. Quando as "aventuras do reco" chegarem ao seu termo, muitas outras boas histórias virão. Podem confiar em mim.
Assim, sem mais trololó, a parte 8. Apreciem.
"Não entendi..."
Explico: Um conto é uma estória curta, com um começo, meio e fim muito bem definidos em um texto curto. Se vocês notaram meus nobres, a narrativa do Flávio se estendeu muito além disso, com vários "picos" e resoluções ao longo do "trajeto". E, como devem perceber, até agora ele ainda não é um recruta. Ainda está - como direi? - "em processo". Dito desta forma, a proposta inicial nesse caso se modificou. A história ganhou vida própria e está seguindo o seu curso. Então, como o protagonista, ela se transformou(e ainda está em transformação). Assim, pode-se dizer que estes escritos estão tomando a forma de um livro de fato, com cada uma das partes sendo um "capítulo".
A proposta continua, mas, como eu tinha dito desde o princípio, não seria lá algo assim muito rígido.
"Mas, e os contos?"
Eles virão meus caros, tenham certeza disso. Quando as "aventuras do reco" chegarem ao seu termo, muitas outras boas histórias virão. Podem confiar em mim.
Assim, sem mais trololó, a parte 8. Apreciem.
8
Depois de uma visita ao posto de saúde e quatro dias de descanso
para o braço, eu estava novinho em folha. A principal vantagem de se
ser jovem é que todos os seus sistemas funcionam como um relógio
suíço. Lembro-me que naquela noite após a seleção meu pai tinha
perguntado o resultado. Ao saber a resposta, vi nele uma ponta de
orgulho e esperança. Não tão óbvio o orgulho, mas não posso
dizer o mesmo da esperança. Pelo jeito, a situação estava ficando
preta em casa, e o salário mínimo de soldo dado aos recrutas seria
muito bem vindo para que pudéssemos afrouxar um pouco o cinto. Minha
mãe apenas me xingou um bocado por causa do estado em que minhas
roupas tinham ficado. Ao que tudo indica, a substância inoculada por
aquele bicho bondoso que a mordera cedo já tinha sido neutralizada.
Meu "mano" ficou todo empolgadão, crente que eu já era um
"milico". Para o moleque, contar que seu irmão mais velho
"era do Exército" parecia ser o ápice do status
entre a piazada. Talvez também porque isso na cabeça dele deveria
significar ser um intocável, alguém a ser temido ou coisa assim.
Ao
contrário do período anterior, estes quase trinta dias passaram bem
depressa. Mas isso se deu porque meu tio tinha ficado doente e fora
internado por mais de três semanas. Assim, fui cuidar da sua banca
de jornais. Não que a doença dele fosse bem vinda, mas a
oportunidade foi. E muito. Afinal, com isso eu matei três coelhos
com uma cajadada só: Ganhei um dinheirinho, serviu como um bom
passatempo e ainda li todas as revistas em quadrinhos e fascículos
de grandes obras que pude.
Logo
o dia 8 de março chegou. Era uma quarta feira, me lembro bem. Estava
um dia fresco. Nem quente, nem frio. Mais um vez acordei às quatro
da manhã. Só que desta vez nada de mordomia. Eu mesmo passei um
café ralo e comi umas "bunda" de pão caseiro - que tinham
sobrado do café da manhã do dia anterior - lambuzadas com uma
margarina vagabunda qualquer. Material conferido, CAM no bolso, lá
fui eu. Viagem tediosa, tudo escuro durante todo o trajeto porque o
horário de verão tinha acabado no último fim de semana. O dia
ainda não tinha amanhecido quando me apresentei ao sentinela no
portão do "20". O sargento-de-dia me conduziu até um
aposento atrás da casa da guarda, ao invés do auditório. Uma sala
pequena, parcamente mobiliada; apenas alguns sofás desconfortáveis
dispostos frente a frente onde caberiam talvez uns vinte e uma
mesinha onde havia uma cafeteira e umas canecas sujas. As paredes
pintadas até a sua metade inferior com um forte verde oliva, sendo a
parte superior em tinta branca. Luz forte. Silêncio absoluto. Apenas
o tic-tac constante de um velho relógio que deveria ter visto
gerações de soldados a "servir seu país". Fora isto,
esparsos sons vindo de uma avenida ainda pouco movimentada devido à
hora do dia. Me pergunto se e quantas noites passarei em claro por
aqui. Ali fico, encostado como um trapo velho num armário de
vassouras.
Conforme
as horas foram avançando, alguns outros foram se juntando a mim,
visto que tinha sido o primeiro a chegar. Três deles eu reconheci
logo de cara. Estavam comigo na "minha" fila dos quarenta
no dia da seleção. Um era bem mais alto que eu, forte como um
touro, moreno e com o cabelo encaracolado. Olhos escuros que
irradiavam inteligência e uma expressão calma. Seu nome era
Jackson. Morava na Vila Trindade. O outro era da minha altura.
Grossas sombrancelhas castanhas encimavam os seus olhos castanhos,
puxando para o verde. Expressão desconfiada, como se estivesse
sempre em estado de alerta. Lábios finos e uma cara meio pálida.
Este era o Sandro. Morava em Pinhais, município da região
metropolitana. O terceiro era o mais baixo de nós. Ligeiramente
gordo, apenas uns quilos extras que - pensava eu - desapareceriam já
nas primeiras semanas da instrução básica. Olhos claros, meio
cinzentos, que estavam escondidos atrás de um óculos de aros de
metal dourado com lentes finas. Cabelos louros e uma cara quadrada
com uma expressão fria, muito parecida com a do capitão Kapp.
Vinicius. Tinha se criado no Capão da Imbuia. Quanto aos demais, não
lhes dei a menor atenção e a recíproca foi verdadeira.
No
sem fazer daquela espera começamos nós quatro a conversar baixinho,
já que tínhamos todos nos reconhecido da seleção e também
estávamos sentados no mesmo sofá. Percebemos que apesar de termos
nos originado em regiões diferentes, tínhamos muita coisa em comum.
Assim a identificação e o entrosamento foram naturais. Cada um
contou um pouco da sua história, a começar por mim.
O
Jackson (o "armário") se abriu logo depois. Com uma voz
bem grave, contou que nascera em Guarapuava(conforme disse, a cidade
mais "gaúcha" do Paraná). Com pai, mãe e outros sete
irmãos tinha vindo para Curitiba quando tinha doze anos. A família
veio em busca de uma vida melhor, visto que haviam pouquíssimos
empregos lá na área em que seu pai trabalhava: a construção
civil. Segundo ele, o velho era um profissional de mão cheia, e por
isso sempre era muito requisitado. Assim, mesmo com família
numerosa, seu padrão de vida era razoável. Até que um dia seu
velho estava voltando do trabalho mais tarde do que o normal. Noite
alta, por volta das dez horas. A poucas quadras de casa, foi
assaltado por um homem sob efeito de drogas, que disparou a arma
mesmo com seu pai tendo entregado os trocados que tinha, suas
ferramentas de trabalho e a bicicleta, que era o seu meio habitual de
transporte. O irmão imediatamente mais velho que ele, com apenas um
ano de diferença, descobriu quem foi, localizou-o e liquidou o
sujeito. Foi capturado e mandado para um reformatório. Assim, o
Jackson ao ver a agonia da mãe, saiu da escola e, juntamente com o
primogênito começou a trabalhar para ajudá-la a dar conta das
despesas como servente na construção civil, assim como seu pai um
dia tinha sido.
Imediatamente
entendi porque o homem era daquele tamanho. Estava explicado. Ser
servente de pedreiro não era serviço pra gente. Era para cavalo.
O
próximo a falar foi o Vinicius(o "husky"). Aliás, a
história da família dele é muito interessante. Seu avô paterno
era um imigrado russo, que nascera em Ulyanovsk, na Rússia Central.
Quando tinha dezessete anos, foi incorporado como soldado raso no
Exército Vermelho, quando da invasão pela Alemanha na Operação
Barbarossa em 1941. O homem tinha lutado em várias batalhas, fora
ferido cinco vezes e quase morreu em Stalingrado, no final de 1942.
Evacuado para um hospital em Moscou, durante a convalescença
apaixonou-se por Lyudmilla, a enfermeira que cuidava dele. Acabaram
casando-se. Recuperado, foi condecorado, promovido, e outra vez
enviado para o Grupo-de-Exércitos Don - sob o general Yeremenko - em
Kursk. Sua unidade foi reequipada com os novíssimos T-34,
considerados os melhores blindados do mundo naquele tempo. Já
sargento, foi designado como comandante de um deles e se envolveu na
maior batalha de tanques da História, em 1943. Sujeito de sorte. Seu
"Kallyn" fora atingido duas vezes por um Phanter alemão e
escapara. Bem danificado, mas com a tripulação intacta. Dos 450
carros de combate que haviam em sua divisão, sobraram apenas 44 no
final da operação, três semanas depois. Em setembro de 1944, foi
novamente ferido em Saur Mogila, na Ucrânia. No mês seguinte, foi
de novo promovido e enviando pela terceira vez para o front,
onde lutou até o final da Segunda Guerra, alcançando o posto de
segundo tenente. Foi uma das testemunhas oculares do hasteamento da
bandeira com a foice e o martelo no alto do que tinha sobrado do
Reichstag
em Berlim, no dia 8 de maio de 1945. Desmobilizado, voltou para sua
cidade natal agora com a esposa, apenas para descobrir que seu irmão
mais velho e seu pai - oito meses antes - tinham sido considerados
"inimigos do estado" e eliminados pela KGB, apesar de serem
membros ativos do Partido Comunista Soviético. Amargurado, Sergei
Plokonskaya(o nome do velhinho) resolveu ir embora do país que assim
tratava os que tanto tinham se sacrificado por ele. Mudou-se para o
extremo oeste da Russia - a Sibéria - e escapou de navio na primeira
oportunidade que teve. Por acaso, veio parar no porto de Santos e
decidiu se estabelecer no Brasil. Assim, graças a sobreposição de
fatores como a guerra mais destrutiva que o mundo já conheceu, a
sorte, o amor, o acaso, a resistência física incomum de um homem e
ações políticas foram os responsáveis pela existência do
Vinícius, conforme suas palavras. Seu pai era gerente de banco, e
sua mãe uma neta de ucranianos, que já tinha nascido aqui, numa
cidade do interior do Paraná chamada Prudentópolis.
Esta
história fascinante deixou todos no mais absoluto silêncio.
Prestava-se atenção equivalente a que as crianças dirigem aos avós
que contam contos de fada à beira de uma fogueira numa noite
estrelada. Até mesmo um dos soldados de serviço que passou por ali
parou para escutá-la. Quando o Vinícius acabou, ficamos olhando
todos para o Sandro(o "mineirinho"), como que convidando-o
a se expressar também. Talvez por timidez ou por julgar que sua
trajetória era insignificante diante da epopéia que tínhamos
acabado de ouvir, mencionou apenas o que eu já descrevi antes em voz
muito baixa, quase sussurrando. Não acrescentou nada mais.
Continuamos
de papo até que o já meu "conhecido" "vareta"(o
sargento Guimarães) entra na sala e ordena para que nós o sigamos
até o prédio da administração do quartel. Olho para o relógio,
já são sete e meia. Impressionante como não percebi o tempo
passar. Saímos daquela sala e seguimos o militar. Fomos introduzidos
no hall de entrada em que eu tinha estado o mês passado e instruídos
para aguardar ali. Ficamos todos em pé. Um a um, fomos chamados pelo
nome até uma sala no primeiro pavimento. Fui introduzido numa sala
que era uma espécie de gabinete, com duas escrivaninhas onde numa
delas estava sentado um primeiro tenente e - surpresa! - uma
"tenenta", ainda em pé. Quando a vi, estaquei.
Ela
era uma morena monumental. Muito jovem. Calculo que não deveria ter
mais do que uns 23 anos de idade. Olhos verdes, sombrancelhas negras
bem delineadas, maçãs do rosto ligeiramente salientes, realçadas
por uma maquiagem leve. Pele com uma cor de mate, como se tivesse
acabado de voltar de umas férias no litoral. E a boca!
Oh......aquela boca! Pequena, com lábios carnudos e proporcionais
delineados por um discreto batom vermelho. Um olhar de grande
inteligência e determinação, mas que sugeria também uma discreta
sensualidade. Porte digno e imponente que, apesar de sua aparência
relativamente frágil, indicava que era uma mulher resistente e
decidida. Mãos com unhas curtas bem feitas, e um suave perfume
adocicado que só poderia ser dela. Cabelos negros brilhantes,
arrumados elegantemente num coque atrás da cabeça encimada por sua
boina davam um toque final magnífico naquela pintura... Foi a
primeira visão de algo realmente belo que pude ter naquela porcaria
de quartel inteiro. Sou arrancado do meu devaneio:
-
Flávio Santos Barbosa? - diz ela.
"Que
voz de anjo, meu Deus!"
- S-sim, sou eu... - respondo, embasbacado.
-
Por favor, sente-se. - pede ela, tirando a boina da cabeça e
sentando-se também.
"Por
favor? Um...quer dizer, uma militar me pedindo por favor? Nem a minha
mãe fala comigo assim! Devo estar sonhando!"
-
Permita-me apresentar; sou a tenente Kayla. Sou a psicóloga do
regimento, e estive encarregada da elaboração e aplicação dos
exames psicotécnicos aos quais foi submetido...
"Gostaria
que testasse outras aptidões minhas..."
-
...Flávio? Está me ouvindo?
-
Ahn..? D-desculpe! Desculpe-me! - respondo, ficando vermelho como um
pimentão.
Ela
inclina-se levemente para a frente e me pergunta:
-
Você está bem? - diz, franzindo o cenho.
"Não,
não estou. E você é a culpada, sua linda!"
-
É... estou sim. - digo, fazendo um grande esforço para me recompor.
-
Ótimo. Como eu dizia, estive encarregada pelos exames psicotécnicos
que prestou. E antes da entrega do CAM do conscrito contendo a
informação de designação para incorporação ou dispensa no
excesso de contingente...
"Não
quero ser dispensado! Quero servir...Quero TE servir, minha deusa..."
-
...entendido?
-
Hein...? Isto é, sim, entendi! - menti.
-
Ok. Vamos então começar.
-
Começar?
-
Sim, com a entrevista final, conscrito! - disse ela, com um leve
sinal de impaciência naquele seu semblante de modelo.
Opa!
Luz amarela. Devo tê-la irritado, já não me chamou pelo nome. Mas,
sabe de uma coisa? Ela ficou ainda mais linda com aquela fisionomia.
É como a expressão de contrariedade de um bebê gorducho que nos
faz ter vontade de apertar as suas bochechas, compreende?...
-
Sim, sim, claro, senhora.
-
Certo então. Apenas quero lembrá-lo que esta não tem nenhum peso
no resultado final, mas se tomará nota em sua ficha apenas como
observação, compreende?
-
Sim, senhora.
-
Qual a sua formação familiar, Flávio? Conte-me sobre a sua
familia.
-
Bom, por onde começar?...Hum...
-
Por onde quiser. - interrompe ela, suavemente.
-
Certo. Meu pai é um sujeito trabalhador, mas que não teve muita
oportunidade na vida. Estudou pouco, até a sexta série do primário.
Foi forçado a abandonar a escola para ajudar minha avó na roça,
junto com seus outros irmãos, quando meu avô morreu. Ao casar-se
com minha mãe, resolveu sair da pequena cidade onde morava no
interior. Hoje em dia trabalha como zelador de um shopping center.
-
Continue. - encoraja-me ela, ao ver que estou um tanto reticente.
-
Minha mãe trabalha como costureira. Muitas vezes até doze horas por
dia. Tenho um irmão cinco anos mais novo...
-
Certo. - responde ela. Não insiste mais. Percebe tanto em seu
instinto profissional quanto no feminino que este tema me incomoda. E
muito.
- Passemos a falar de você...
"Preferia
que falássemos sobre NÓS..."
-
...qual a sua escolaridade?
-
Ensino médio completo.
-
E quais os seus interesses e habilidades? -continua ela.
Ao
entrarmos neste campo, esqueço por completo do meu embaraço e
começo a falar com entusiasmo:
-
Bom, sou fascinado por História, em especial pela história das
grandes civilizações, notadamente o Império Romano. Apenas um
parêntese; sabia que a maioria dos conceitos do exército moderno
vem da legiões romanas?
-
Verdade? Interessante. - diz ela, concluo eu mais por educação do
que por interesse genuíno. - Algo mais?
"
Por figuras curvilíneas como a sua..."
- Gosto muito de literatura. Machado de Assis, José Saramago, Tolstói,
Dickens, Sidney Sheldom, Marx, Ariano Suassuna, Arthur Conan Doyle,
Dostoiévski... Também me interesso por mecânica, em especial a dos
motores; os princípios químicos da combustão interna, as forças
da física envolvidas, a engenharia de projeto e as pesquisas
necessárias. Também por eletrônica - que acho absolutamente
fantástica - em especial a parte sobre impedância e os preceitos de
Ohms.
Ao
mencionar a lista de autores e meus interesses, notei algo
ligeiramente diferenciado em sua expressão. Os olhos estavam pouca
coisa mais abertos do que o normal e percebi um discreto levantar dos
cantos da sua boca. Ao que tudo indica, ficou surpresa com meu
conhecimento e entusiasmo ao falar de coisas que para mim eram - e
são - muito importantes. Com certeza, diante dela ali estava alguém
que simplesmente não era como os demais.
-
Muito interessante. Vejo que é um autodidata.
-
Não me definiria exatamente como um. Apenas como alguém que tem
prazer em adquirir - como direi? - sabedoria.
-
Sabedoria? Fale mais sobre isto. - inquire ela, deixando-me surpreso.
Penso comigo que agora "estou na minha praia". Se existe um
tempo para ficar quieto e outro para falar, agora era absolutamente o
tempo de falar:
-
Sim, sabedoria. Olhe por favor para este computador que está em sua
mesa.
Ela
me faz um ar divertido, como que me perguntando: "mas não sou
eu a condutora da entrevista?" Percebo que o outro tenente está
a nos olhar, com uma expressão de estranheza. De qualquer modo, ela
não lhe dá atenção e faz o que peço:
-
Qual a quantidade de conhecimento que ele pode armazenar? Uns 150
megabytes? Isto não é uma enormidade de informação? (novamente,
década de noventa, pessoal. Hoje, um reles pendrive armazena até
quinhentas vezes mais...)
-
Sim, por volta disso. - diz ela, com interesse.
-
Perfeito. Mas, te pergunto. Todo este conhecimento, esta informação
o torna uma máquina sábia, por assim dizer?
-
Não, evidentemente.
-
A sabedoria - por definição - é o conhecimento posto em prática
no melhor momento e da melhor forma possíveis. Então, justamente
por isso que o que busco é a sabedoria, e não apenas o
conhecimento.
Tanto
a Kayla como o outro oficial me olham de uma forma que jamais tinha
visto de pessoas em tal posição. O tenente, com um ar de "
quem diabos é essse moleque?". Ela me olha com um misto de
surpresa incontida e franca admiração. Comenta, olhando em direção
do outro militar:
-
Parece Anderson, (o nome do oficial) que temos alguém com intelecto
acima da média entre nós. Incomum, realmente incomum. - diz olhando
novamente para mim, agora num sincero sorriso.
- Muito obrigado senhora. - respondo, agradecido.
- Não me agradeça. Mas, podemos ir em frente com a entrevista? -
fala, com simpatia.
- Sim claro.
- Certo. Agora Flávio, me diga: Você quer realmente ser
incorporado? Se a resposta for sim, por quê?
Franzi
o cenho, apertei os olhos e fiquei pensando nisso tudo por alguns
segundos, olhando para o vazio. Mais uma vez, todo um filme se passa
na minha cabeça. E agora? O que diria a ela? A verdade? Que eu
precisava muito - mas muito mesmo - daquele "emprego"? Que
eu não tinha mais nenhuma outra opção viável por um bom tempo?
Que meu pai estava rezando para que eu fosse "engajado"
para que meu soldo complementasse o nosso minúsculo orçamento? Que
eu estava ali porque não tinha passado no vestibular? Não.
Definitivamente não. Não iria me expor daquela maneira. Sabia até
ali que esta entrevista nem o psicotécnico tinham muito peso na
decisão final mas de qualquer forma, eu queria uma oportunidade, não
piedade. Assim - vagarosamente - disse apenas:
-
Sim. E sim porque penso que será uma oportunidade única de obter um
pouco da sabedoria de que falei. Em nenhum outro lugar terei acesso
ao que apenas o Exército tem condições de oferecer.
-
Compreendo. - diz ela.
Percebo
que seu rosto muda. De uma expressão mista de descontração e
respeito a uma outra, que diz claramente saber que o que eu dissera
não era verdade. Que mostra uma ponta de - talvez - consternação,
um leve embaraço. Tristeza até(se eu não estava sonhando). Não
fico surpreso. Eu deveria saber que, como psicóloga experiente que
era, entenderia muito mais a meu respeito não pela linguagem verbal,
mas pela não
verbal.
- Muito bem, Flávio. Estas eram as informações de que eu
precisava. - completa, num tom de voz indefinido.
Dito
isto, ela abaixa os olhos em direção à minha ficha com as
anotações que fizera durante a entrevista. Reflete profundamente
por uns instantes, exatamente como o capitão Kapp durante o episódio
dos testes físicos. Olha para o tenente Anderson, se detém por um
segundo e novamente cruza o olhar com o meu. Estende sua delicada mão
direita em direção a dois carimbos alinhados lado a lado - pairando
por um instante acima deles - e finalmente pega o da direita,
pressionando-o em seguida numa almofada entintada. Pega meu
certificado - que estava por baixo da ficha - vira-o e carimba
cuidadosamente, escrevendo nos espaços em branco. Em seguida, o
entrega a mim. De imediato, leio o que o elastômetro imprimiu
naquele pedaço de papel:
"
Designado para incorporação..."
Só
consigo ler até aí. Minha visão se embaça, meus olhos
simplesmente não conseguem fixar o foco. Estão marejados, as
lágrimas me obscurecem a visão.
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