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quarta-feira, 6 de maio de 2015

Crônicas de um recruta - Parte 8

     Bom dia, boa tarde, boa noite, amigos leitores.

     No primeiro post deste blog, uma das propostas que estabeleci era a postagem de contos...

"Sim, nos lembramos disso."

     Ótimo, acontece que literariamente falando, estas crônicas deixaram há algum tempo de se caracterizarem como tal(mais ou menos ali pela parte 3...).

"Não entendi..."





     Explico: Um conto é uma estória curta, com um começo, meio e fim muito bem definidos em um texto curto. Se vocês notaram meus nobres, a narrativa do Flávio se estendeu muito além disso, com vários "picos" e resoluções ao longo do "trajeto". E, como devem perceber, até agora ele ainda não é um recruta. Ainda está - como direi? - "em processo". Dito desta forma, a proposta inicial nesse caso se modificou. A história ganhou vida própria e está seguindo o seu curso. Então, como o protagonista, ela se transformou(e ainda está em transformação). Assim, pode-se dizer que estes escritos estão tomando a forma de um livro de fato, com cada uma das partes sendo um "capítulo".

     A proposta continua, mas, como eu tinha dito desde o princípio, não seria lá algo assim muito rígido.

"Mas, e os contos?"

Eles virão meus caros, tenham certeza disso. Quando as "aventuras do reco" chegarem ao seu termo, muitas outras boas histórias virão. Podem confiar em mim.

Assim, sem mais trololó, a parte 8. Apreciem.



8

     Depois de uma visita ao posto de saúde e quatro dias de descanso para o braço, eu estava novinho em folha. A principal vantagem de se ser jovem é que todos os seus sistemas funcionam como um relógio suíço. Lembro-me que naquela noite após a seleção meu pai tinha perguntado o resultado. Ao saber a resposta, vi nele uma ponta de orgulho e esperança. Não tão óbvio o orgulho, mas não posso dizer o mesmo da esperança. Pelo jeito, a situação estava ficando preta em casa, e o salário mínimo de soldo dado aos recrutas seria muito bem vindo para que pudéssemos afrouxar um pouco o cinto. Minha mãe apenas me xingou um bocado por causa do estado em que minhas roupas tinham ficado. Ao que tudo indica, a substância inoculada por aquele bicho bondoso que a mordera cedo já tinha sido neutralizada. Meu "mano" ficou todo empolgadão, crente que eu já era um "milico". Para o moleque, contar que seu irmão mais velho "era do Exército" parecia ser o ápice do status entre a piazada. Talvez também porque isso na cabeça dele deveria significar ser um intocável, alguém a ser temido ou coisa assim.
     Ao contrário do período anterior, estes quase trinta dias passaram bem depressa. Mas isso se deu porque meu tio tinha ficado doente e fora internado por mais de três semanas. Assim, fui cuidar da sua banca de jornais. Não que a doença dele fosse bem vinda, mas a oportunidade foi. E muito. Afinal, com isso eu matei três coelhos com uma cajadada só: Ganhei um dinheirinho, serviu como um bom passatempo e ainda li todas as revistas em quadrinhos e fascículos de grandes obras que pude.
     Logo o dia 8 de março chegou. Era uma quarta feira, me lembro bem. Estava um dia fresco. Nem quente, nem frio. Mais um vez acordei às quatro da manhã. Só que desta vez nada de mordomia. Eu mesmo passei um café ralo e comi umas "bunda" de pão caseiro - que tinham sobrado do café da manhã do dia anterior - lambuzadas com uma margarina vagabunda qualquer. Material conferido, CAM no bolso, lá fui eu. Viagem tediosa, tudo escuro durante todo o trajeto porque o horário de verão tinha acabado no último fim de semana. O dia ainda não tinha amanhecido quando me apresentei ao sentinela no portão do "20". O sargento-de-dia me conduziu até um aposento atrás da casa da guarda, ao invés do auditório. Uma sala pequena, parcamente mobiliada; apenas alguns sofás desconfortáveis dispostos frente a frente onde caberiam talvez uns vinte e uma mesinha onde havia uma cafeteira e umas canecas sujas. As paredes pintadas até a sua metade inferior com um forte verde oliva, sendo a parte superior em tinta branca. Luz forte. Silêncio absoluto. Apenas o tic-tac constante de um velho relógio que deveria ter visto gerações de soldados a "servir seu país". Fora isto, esparsos sons vindo de uma avenida ainda pouco movimentada devido à hora do dia. Me pergunto se e quantas noites passarei em claro por aqui. Ali fico, encostado como um trapo velho num armário de vassouras.
     Conforme as horas foram avançando, alguns outros foram se juntando a mim, visto que tinha sido o primeiro a chegar. Três deles eu reconheci logo de cara. Estavam comigo na "minha" fila dos quarenta no dia da seleção. Um era bem mais alto que eu, forte como um touro, moreno e com o cabelo encaracolado. Olhos escuros que irradiavam inteligência e uma expressão calma. Seu nome era Jackson. Morava na Vila Trindade. O outro era da minha altura. Grossas sombrancelhas castanhas encimavam os seus olhos castanhos, puxando para o verde. Expressão desconfiada, como se estivesse sempre em estado de alerta. Lábios finos e uma cara meio pálida. Este era o Sandro. Morava em Pinhais, município da região metropolitana. O terceiro era o mais baixo de nós. Ligeiramente gordo, apenas uns quilos extras que - pensava eu - desapareceriam já nas primeiras semanas da instrução básica. Olhos claros, meio cinzentos, que estavam escondidos atrás de um óculos de aros de metal dourado com lentes finas. Cabelos louros e uma cara quadrada com uma expressão fria, muito parecida com a do capitão Kapp. Vinicius. Tinha se criado no Capão da Imbuia. Quanto aos demais, não lhes dei a menor atenção e a recíproca foi verdadeira.
     No sem fazer daquela espera começamos nós quatro a conversar baixinho, já que tínhamos todos nos reconhecido da seleção e também estávamos sentados no mesmo sofá. Percebemos que apesar de termos nos originado em regiões diferentes, tínhamos muita coisa em comum. Assim a identificação e o entrosamento foram naturais. Cada um contou um pouco da sua história, a começar por mim.
     O Jackson (o "armário") se abriu logo depois. Com uma voz bem grave, contou que nascera em Guarapuava(conforme disse, a cidade mais "gaúcha" do Paraná). Com pai, mãe e outros sete irmãos tinha vindo para Curitiba quando tinha doze anos. A família veio em busca de uma vida melhor, visto que haviam pouquíssimos empregos lá na área em que seu pai trabalhava: a construção civil. Segundo ele, o velho era um profissional de mão cheia, e por isso sempre era muito requisitado. Assim, mesmo com família numerosa, seu padrão de vida era razoável. Até que um dia seu velho estava voltando do trabalho mais tarde do que o normal. Noite alta, por volta das dez horas. A poucas quadras de casa, foi assaltado por um homem sob efeito de drogas, que disparou a arma mesmo com seu pai tendo entregado os trocados que tinha, suas ferramentas de trabalho e a bicicleta, que era o seu meio habitual de transporte. O irmão imediatamente mais velho que ele, com apenas um ano de diferença, descobriu quem foi, localizou-o e liquidou o sujeito. Foi capturado e mandado para um reformatório. Assim, o Jackson ao ver a agonia da mãe, saiu da escola e, juntamente com o primogênito começou a trabalhar para ajudá-la a dar conta das despesas como servente na construção civil, assim como seu pai um dia tinha sido.
Imediatamente entendi porque o homem era daquele tamanho. Estava explicado. Ser servente de pedreiro não era serviço pra gente. Era para cavalo.
     O próximo a falar foi o Vinicius(o "husky"). Aliás, a história da família dele é muito interessante. Seu avô paterno era um imigrado russo, que nascera em Ulyanovsk, na Rússia Central. Quando tinha dezessete anos, foi incorporado como soldado raso no Exército Vermelho, quando da invasão pela Alemanha na Operação Barbarossa em 1941. O homem tinha lutado em várias batalhas, fora ferido cinco vezes e quase morreu em Stalingrado, no final de 1942. Evacuado para um hospital em Moscou, durante a convalescença apaixonou-se por Lyudmilla, a enfermeira que cuidava dele. Acabaram casando-se. Recuperado, foi condecorado, promovido, e outra vez enviado para o Grupo-de-Exércitos Don - sob o general Yeremenko - em Kursk. Sua unidade foi reequipada com os novíssimos T-34, considerados os melhores blindados do mundo naquele tempo. Já sargento, foi designado como comandante de um deles e se envolveu na maior batalha de tanques da História, em 1943. Sujeito de sorte. Seu "Kallyn" fora atingido duas vezes por um Phanter alemão e escapara. Bem danificado, mas com a tripulação intacta. Dos 450 carros de combate que haviam em sua divisão, sobraram apenas 44 no final da operação, três semanas depois. Em setembro de 1944, foi novamente ferido em Saur Mogila, na Ucrânia. No mês seguinte, foi de novo promovido e enviando pela terceira vez para o front, onde lutou até o final da Segunda Guerra, alcançando o posto de segundo tenente. Foi uma das testemunhas oculares do hasteamento da bandeira com a foice e o martelo no alto do que tinha sobrado do Reichstag em Berlim, no dia 8 de maio de 1945. Desmobilizado, voltou para sua cidade natal agora com a esposa, apenas para descobrir que seu irmão mais velho e seu pai - oito meses antes - tinham sido considerados "inimigos do estado" e eliminados pela KGB, apesar de serem membros ativos do Partido Comunista Soviético. Amargurado, Sergei Plokonskaya(o nome do velhinho) resolveu ir embora do país que assim tratava os que tanto tinham se sacrificado por ele. Mudou-se para o extremo oeste da Russia - a Sibéria - e escapou de navio na primeira oportunidade que teve. Por acaso, veio parar no porto de Santos e decidiu se estabelecer no Brasil. Assim, graças a sobreposição de fatores como a guerra mais destrutiva que o mundo já conheceu, a sorte, o amor, o acaso, a resistência física incomum de um homem e ações políticas foram os responsáveis pela existência do Vinícius, conforme suas palavras. Seu pai era gerente de banco, e sua mãe uma neta de ucranianos, que já tinha nascido aqui, numa cidade do interior do Paraná chamada Prudentópolis.
     Esta história fascinante deixou todos no mais absoluto silêncio. Prestava-se atenção equivalente a que as crianças dirigem aos avós que contam contos de fada à beira de uma fogueira numa noite estrelada. Até mesmo um dos soldados de serviço que passou por ali parou para escutá-la. Quando o Vinícius acabou, ficamos olhando todos para o Sandro(o "mineirinho"), como que convidando-o a se expressar também. Talvez por timidez ou por julgar que sua trajetória era insignificante diante da epopéia que tínhamos acabado de ouvir, mencionou apenas o que eu já descrevi antes em voz muito baixa, quase sussurrando. Não acrescentou nada mais.
     Continuamos de papo até que o já meu "conhecido" "vareta"(o sargento Guimarães) entra na sala e ordena para que nós o sigamos até o prédio da administração do quartel. Olho para o relógio, já são sete e meia. Impressionante como não percebi o tempo passar. Saímos daquela sala e seguimos o militar. Fomos introduzidos no hall de entrada em que eu tinha estado o mês passado e instruídos para aguardar ali. Ficamos todos em pé. Um a um, fomos chamados pelo nome até uma sala no primeiro pavimento. Fui introduzido numa sala que era uma espécie de gabinete, com duas escrivaninhas onde numa delas estava sentado um primeiro tenente e - surpresa! - uma "tenenta", ainda em pé. Quando a vi, estaquei.
     Ela era uma morena monumental. Muito jovem. Calculo que não deveria ter mais do que uns 23 anos de idade. Olhos verdes, sombrancelhas negras bem delineadas, maçãs do rosto ligeiramente salientes, realçadas por uma maquiagem leve. Pele com uma cor de mate, como se tivesse acabado de voltar de umas férias no litoral. E a boca! Oh......aquela boca! Pequena, com lábios carnudos e proporcionais delineados por um discreto batom vermelho. Um olhar de grande inteligência e determinação, mas que sugeria também uma discreta sensualidade. Porte digno e imponente que, apesar de sua aparência relativamente frágil, indicava que era uma mulher resistente e decidida. Mãos com unhas curtas bem feitas, e um suave perfume adocicado que só poderia ser dela. Cabelos negros brilhantes, arrumados elegantemente num coque atrás da cabeça encimada por sua boina davam um toque final magnífico naquela pintura... Foi a primeira visão de algo realmente belo que pude ter naquela porcaria de quartel inteiro. Sou arrancado do meu devaneio:
     - Flávio Santos Barbosa? - diz ela.

"Que voz de anjo, meu Deus!"
   
     - S-sim, sou eu... - respondo, embasbacado.
     - Por favor, sente-se. - pede ela, tirando a boina da cabeça e sentando-se também.
"Por favor? Um...quer dizer, uma militar me pedindo por favor? Nem a minha mãe fala comigo assim! Devo estar sonhando!"
    - Permita-me apresentar; sou a tenente Kayla. Sou a psicóloga do regimento, e estive encarregada da elaboração e aplicação dos exames psicotécnicos aos quais foi submetido...

"Gostaria que testasse outras aptidões minhas..."

     - ...Flávio? Está me ouvindo?
     - Ahn..? D-desculpe! Desculpe-me! - respondo, ficando vermelho como um pimentão.
Ela inclina-se levemente para a frente e me pergunta:
     - Você está bem? - diz, franzindo o cenho.

"Não, não estou. E você é a culpada, sua linda!"

     - É... estou sim. - digo, fazendo um grande esforço para me recompor.
     - Ótimo. Como eu dizia, estive encarregada pelos exames psicotécnicos que prestou. E antes da entrega do CAM do conscrito contendo a informação de designação para incorporação ou dispensa no excesso de contingente...

"Não quero ser dispensado! Quero servir...Quero TE servir, minha deusa..."

     - ...entendido?
     - Hein...? Isto é, sim, entendi! - menti.
     - Ok. Vamos então começar.
     - Começar?
    - Sim, com a entrevista final, conscrito! - disse ela, com um leve sinal de impaciência naquele seu semblante de modelo.
Opa! Luz amarela. Devo tê-la irritado, já não me chamou pelo nome. Mas, sabe de uma coisa? Ela ficou ainda mais linda com aquela fisionomia. É como a expressão de contrariedade de um bebê gorducho que nos faz ter vontade de apertar as suas bochechas, compreende?...
     - Sim, sim, claro, senhora.
     - Certo então. Apenas quero lembrá-lo que esta não tem nenhum peso no resultado final, mas se tomará nota em sua ficha apenas como observação, compreende?
     - Sim, senhora.
     - Qual a sua formação familiar, Flávio? Conte-me sobre a sua familia.
     - Bom, por onde começar?...Hum...
     - Por onde quiser. - interrompe ela, suavemente.
     - Certo. Meu pai é um sujeito trabalhador, mas que não teve muita oportunidade na vida. Estudou pouco, até a sexta série do primário. Foi forçado a abandonar a escola para ajudar minha avó na roça, junto com seus outros irmãos, quando meu avô morreu. Ao casar-se com minha mãe, resolveu sair da pequena cidade onde morava no interior. Hoje em dia trabalha como zelador de um shopping center.
     - Continue. - encoraja-me ela, ao ver que estou um tanto reticente.
     - Minha mãe trabalha como costureira. Muitas vezes até doze horas por dia. Tenho um irmão cinco anos mais novo...
     - Certo. - responde ela. Não insiste mais. Percebe tanto em seu instinto profissional quanto no feminino que este tema me incomoda. E muito.
      - Passemos a falar de você...

"Preferia que falássemos sobre NÓS..."

     - ...qual a sua escolaridade?
     - Ensino médio completo.
     - E quais os seus interesses e habilidades? -continua ela.
Ao entrarmos neste campo, esqueço por completo do meu embaraço e começo a falar com entusiasmo:
    - Bom, sou fascinado por História, em especial pela história das grandes civilizações, notadamente o Império Romano. Apenas um parêntese; sabia que a maioria dos conceitos do exército moderno vem da legiões romanas?
     - Verdade? Interessante. - diz ela, concluo eu mais por educação do que por interesse genuíno. - Algo mais?

" Por figuras curvilíneas como a sua..."

      - Gosto muito de literatura. Machado de Assis, José Saramago, Tolstói, Dickens, Sidney Sheldom, Marx, Ariano Suassuna, Arthur Conan Doyle, Dostoiévski... Também me interesso por mecânica, em especial a dos motores; os princípios químicos da combustão interna, as forças da física envolvidas, a engenharia de projeto e as pesquisas necessárias. Também por eletrônica - que acho absolutamente fantástica - em especial a parte sobre impedância e os preceitos de Ohms.
Ao mencionar a lista de autores e meus interesses, notei algo ligeiramente diferenciado em sua expressão. Os olhos estavam pouca coisa mais abertos do que o normal e percebi um discreto levantar dos cantos da sua boca. Ao que tudo indica, ficou surpresa com meu conhecimento e entusiasmo ao falar de coisas que para mim eram - e são - muito importantes. Com certeza, diante dela ali estava alguém que simplesmente não era como os demais.
     - Muito interessante. Vejo que é um autodidata.
   - Não me definiria exatamente como um. Apenas como alguém que tem prazer em adquirir - como direi? - sabedoria.
   - Sabedoria? Fale mais sobre isto. - inquire ela, deixando-me surpreso. Penso comigo que agora "estou na minha praia". Se existe um tempo para ficar quieto e outro para falar, agora era absolutamente o tempo de falar:
     - Sim, sabedoria. Olhe por favor para este computador que está em sua mesa.
Ela me faz um ar divertido, como que me perguntando: "mas não sou eu a condutora da entrevista?" Percebo que o outro tenente está a nos olhar, com uma expressão de estranheza. De qualquer modo, ela não lhe dá atenção e faz o que peço:
    - Qual a quantidade de conhecimento que ele pode armazenar? Uns 150 megabytes? Isto não é uma enormidade de informação? (novamente, década de noventa, pessoal. Hoje, um reles pendrive armazena até quinhentas vezes mais...)
     - Sim, por volta disso. - diz ela, com interesse.
   - Perfeito. Mas, te pergunto. Todo este conhecimento, esta informação o torna uma máquina sábia, por assim dizer?
     - Não, evidentemente.
     - A sabedoria - por definição - é o conhecimento posto em prática no melhor momento e da melhor forma possíveis. Então, justamente por isso que o que busco é a sabedoria, e não apenas o conhecimento.
     Tanto a Kayla como o outro oficial me olham de uma forma que jamais tinha visto de pessoas em tal posição. O tenente, com um ar de " quem diabos é essse moleque?". Ela me olha com um misto de surpresa incontida e franca admiração. Comenta, olhando em direção do outro militar:
     - Parece Anderson, (o nome do oficial) que temos alguém com intelecto acima da média entre nós. Incomum, realmente incomum. - diz olhando novamente para mim, agora num sincero sorriso.
     - Muito obrigado senhora. - respondo, agradecido.
     - Não me agradeça. Mas, podemos ir em frente com a entrevista? - fala, com simpatia.
     - Sim claro.
    - Certo. Agora Flávio, me diga: Você quer realmente ser incorporado? Se a resposta for sim, por quê?
     Franzi o cenho, apertei os olhos e fiquei pensando nisso tudo por alguns segundos, olhando para o vazio. Mais uma vez, todo um filme se passa na minha cabeça. E agora? O que diria a ela? A verdade? Que eu precisava muito - mas muito mesmo - daquele "emprego"? Que eu não tinha mais nenhuma outra opção viável por um bom tempo? Que meu pai estava rezando para que eu fosse "engajado" para que meu soldo complementasse o nosso minúsculo orçamento? Que eu estava ali porque não tinha passado no vestibular? Não. Definitivamente não. Não iria me expor daquela maneira. Sabia até ali que esta entrevista nem o psicotécnico tinham muito peso na decisão final mas de qualquer forma, eu queria uma oportunidade, não piedade. Assim - vagarosamente - disse apenas:
     - Sim. E sim porque penso que será uma oportunidade única de obter um pouco da sabedoria de que falei. Em nenhum outro lugar terei acesso ao que apenas o Exército tem condições de oferecer.
      - Compreendo. - diz ela.
Percebo que seu rosto muda. De uma expressão mista de descontração e respeito a uma outra, que diz claramente saber que o que eu dissera não era verdade. Que mostra uma ponta de - talvez - consternação, um leve embaraço. Tristeza até(se eu não estava sonhando). Não fico surpreso. Eu deveria saber que, como psicóloga experiente que era, entenderia muito mais a meu respeito não pela linguagem verbal, mas pela não verbal.
     - Muito bem, Flávio. Estas eram as informações de que eu precisava. - completa, num tom de voz indefinido.
     Dito isto, ela abaixa os olhos em direção à minha ficha com as anotações que fizera durante a entrevista. Reflete profundamente por uns instantes, exatamente como o capitão Kapp durante o episódio dos testes físicos. Olha para o tenente Anderson, se detém por um segundo e novamente cruza o olhar com o meu. Estende sua delicada mão direita em direção a dois carimbos alinhados lado a lado - pairando por um instante acima deles - e finalmente pega o da direita, pressionando-o em seguida numa almofada entintada. Pega meu certificado - que estava por baixo da ficha - vira-o e carimba cuidadosamente, escrevendo nos espaços em branco. Em seguida, o entrega a mim. De imediato, leio o que o elastômetro imprimiu naquele pedaço de papel:

" Designado para incorporação..."


Só consigo ler até aí. Minha visão se embaça, meus olhos simplesmente não conseguem fixar o foco. Estão marejados, as lágrimas me obscurecem a visão.

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