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segunda-feira, 18 de maio de 2015

Crônicas de um recruta - parte 10

Como vão, amigos? Tudo em paz?

Conforme prometido, escrevi bastante no final de semana e dei uma boa adiantada na história. Lamento mais uma vez pela falta de posts conforme expliquei na semana passada, mas o tempo estava realmente muito curto.

"Está perdoado..."

Obrigado pelo vosso perdão, nobres. Fico aliviado...

Muito bem, vocês já esperaram demais. Enfim, a parte dez. Boa leitura!





10

     O resto da manhã e a tarde daquele dia se foram velozmente. A noite chegou sem que eu percebesse. Tive muito tempo para pensar sobre o que me aconteceria no resto daquele ano. Depois de preparar o jantar, deito-me no sofá. Leio e releio o prospecto que aquela maravilhosa me deu. Aí eu comecei a pensar nela. Me perguntei como uma beldade daquelas tinha ido parar no Exército. O que a tinha levado a querer seguir carreira nas Forças Armadas? Será que alguém da família era ou tinha sido militar? De onde viera o desejo ou o incentivo para isso? E por falar nisso, como seria a família dela? Não vi aliança nenhuma em suas mãos. Teria alguém? Um namorado talvez?...
Perguntas, perguntas, perguntas... Apenas questões sem resposta. E isso me incomodava. Mas, por quê? Por quê eu tinha ficado tão mexido com aquela aparição celestial? Não era apenas sua beleza. Não era apenas a sua atitude bondosa e humana. Era algo mais. Não sabia explicar...
     - Oi filho. Tudo certo? - cumprimenta meu pai ao entrar na sala, me tirando do meu estado de transe.
      - Oi, pai. Como vai essa força? - respondo me sentando no sofá, porque estava deitado nele.
    - Nada bem. Nada bem mesmo. - responde com um traço qualquer de tristeza, desabando na poltrona em que pouco antes estiveram meus pés.
     - Que que houve, velho? Qual o problema? - inquiro, preocupado. Desde onde me lembrava, nunca tinha visto ele falar daquele jeito.
E o que ele disse me atingiu como um soco do Mike Tyson:
      - Fui demitido. - disse secamente.
      - QUÊ? - exclamo, incrédulo.
      - Isso mesmo. Demitido.
      - Mas...mas...como? Como aconteceu? Por quê?
   - Um pouco antes do fim do expediente fui chamado na administração. E lá, fui comunicado que meus serviços não eram mais necessários porque o "gato" estava fechando as portas e eles tinham contratado outro para tomar conta do serviço.
   - Assim? Simplesmente isso? Depois de dez anos? Não dá pra acreditar! - digo, aumentando a minha estupefação.
    - É. É isso mesmo. - e emenda - Só fico pensando como vou explicar isto para a Eulália... - diz isto mais para si mesmo do que para mim, se levantando e indo para a cozinha.
     O homem era a imagem da derrota, da desolação. Sua cabeça deveria estar em turbilhão. Eu ainda não tinha maturidade suficiente na época para entender a dimensão do que deveria estar pensando, ou mesmo sentindo. E pra falar a verdade, acho que até hoje não tenho como compreender. Apenas posso conjecturar.
      Fiquei me perguntando: Como as coisas podiam ser assim? Porque as pessoas não tinham a menor consideração para com aqueles que tanto e tão dedicadamente trabalharam em seus ofícios?
Meu pai nunca tinha faltado um único dia sequer, nem por motivos justificáveis. Ficou por três anos seguidos sem férias, "vendendo-as" porque não haviam encontrado substitutos para cobrir sua ausência. Seis dias por semana, quatro semanas por mês, doze meses por ano, em jornadas que muitas vezes ultrapassavam as doze horas diárias sem pagamento de extras. Apenas o maldito banco de horas, cujo saldo nunca podia ser usado quando meu velho precisava e cujas contas nunca fechavam. E tudo pra quê? Para isto?
     Ao refletir a respeito, senti uma profunda revolta. E este sentimento foi a mecha que acendeu uma fornalha dentro de mim, levando-me a fundir todos os pequenos blocos de determinação que haviam num único, muito maior. Um sólido monolito de vontade que seria o meu norte dali em diante. Jurei para mim mesmo que jamais passaria por aquela suprema humilhação de ser descartado como uma camisinha usada depois da obtenção dos prazeres. De ser varrido de seu posto como a sujeira debaixo dos pés. Não senhor. Comigo não.
     Reconheço que hoje isso talvez pareça um pouco irracional. Mas a raiva que sentia me anuviou a visão analítica que sempre tive. Todavia, em outras ocasiões os sentimentos me ajudaram muito mais do que a razão, por incrível que isso possa parecer.
Fiquei lá, largado no sofá, ruminando. E lembrei-me que o "veinho" nem sequer tinha se lembrado de perguntar a respeito do resultado final da seleção, arrasado como estava. Não fui atrás dele. Preferi deixá-lo sozinho com seus pensamentos.
     Pouco mais de uma hora depois chega a minha mãe, cheia de sacolas. Vendo minha cara, logo concluiu que alguma coisa "não tinha prestado":
     - Que que foi, moleque? Que cara é essa? - pergunta, com aquela voz característica de quem se prepara para bater em alguém.
     - Acho melhor perguntar pro pai... - respondo, nem querendo me intrometer no papo que pertencia a eles, e somente a eles.
     - Que que foi, Flávio? Se você aprontou alguma...
     - Que aprontei que nada! Não tenho nada a ver com isso, oras! Vá lá falar com o pai que ele te explica! - interrompo, contrariado.
Pronto. Lá se foi ela para a cozinha também sem saber que a partir de hoje sou "empregado" do governo...
     Ouço a conversa toda, afinal, a sala estava ao lado da cozinha, sendo que apenas uma porta ligava as duas. A princípio, as vozes eram calmas. Mas, conforme as questões iam surgindo, iam se exaltando, demonstrando o grau de tensão que tratar deste problema trazia, bem como todos os outros que seriam consequência do primeiro. A discussão toda durou um tempão. Depois, vejo minha mãe passar por mim sem dizer palavra, entrando no quarto e fechando a porta com estrondo. Logo concluo que era a última coisa que ela esperava que acontecesse.
     Levantei-me e fui em direção à cozinha, onde estava meu pai, sentado na cabeceira da mesa e olhando para o vazio. Olho para o fogão e vejo que as panelas estavam todas fechadas, e que não haviam pratos na mesa. Pelo jeito, o apetite faltara para ambos.
Sento-me numa cadeira próxima à dele e falo:
     - Pai, tenho novidades.
Ele não me olha, apenas grunhe, continuando a olhar para o nada.
    - Fui designado. - continuo - Fui aceito, pai. Devo estar no quartel na próxima segunda-feira.
Finalmente ele me olha e, com um sorriso amarelo diz:
    - Que bom, meu rapaz. Pelo menos uma pequena boa notícia. Pena que agora não vai resolver o nosso problema, já que estou desempregado a partir de hoje.
     - Mas e o seguro desemprego, pai? - pergunto, esperançoso.
   - Eu e sua mãe acabamos de fazer as contas. Nem com o que você vai receber o orçamento fecha. O seguro equivale a dois terços do que eu ganhava lá.
     - Mas o soldo vai ser de um salário mínimo. - replico.
     - Foi o que concluí e que foi levado em conta no cálculo. Agora, me dê licença que eu vou para a cama. Dizem que se pensa melhor depois de uma boa noite de sono.
     Dizendo isso, se levanta e sai sem a menor cerimônia. Eu não sabia o que pensar, nem o que sentir ao certo, além é claro do que já tinha sentido antes, quando fiquei sabendo do problema. Também me levanto, apago a luz da cozinha e vou para o quarto onde já estava o meu irmão, dormindo o sono dos justos, alheio a tudo o que estava acontecendo. Troco de roupa, colocando o pijama que já usava há alguns anos e me deito, apagando a luz em seguida. Não consigo pegar no sono. Fico remoendo os acontecimentos do dia e, por incrível que pareça, não são os problemas dos meus pais que preenchem meus pensamentos. O que me toma de assalto é a visão da mulher mais bonita que eu já tinha visto em toda a minha vida. E não era só a beleza física. Era todo o conjunto, se é que dá para definir assim. Eu quase que podia sentir aquele perfume adocicado, com um suave toque cítrico. Assim fiquei, olhando para o telhado, no escuro, com a imaginação me fazendo voar para longe...

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