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sexta-feira, 29 de maio de 2015

Crônicas de um recruta - Parte 18

Olá, meu público.

     "Batendo ponto" aqui novamente, publicando mais uma parte destas "crônicas-livro", como definiu com muita propriedade uma leitora do blog.
     Diz o ditado que a primeira impressão é a que fica. E isto vale para ambas ou mais partes envolvidas num primeiro contato, em qualquer situação nesta vida, "n'est pas"?
     Nesta parte, ainda estamos acompanhado o primeiro dia de quartel do nosso personagem, e muitas são as primeiras impressões, tanto dele como de seus colegas e superiores. Quais são elas? E seus desdobramentos?

Vejamos:



18


     Eu e meus três amigos mal terminamos de comer quando o sargento Barreto aparece e se dirige a nós:
      - Atenção, recrutas! - diz, olhando para seu relógio de pulso. - Agora são precisamente 1300 horas(uma da tarde, no palavreado militar). O seu horário de almoço se encerra aqui. Levantem-se imediatamente e formem fila no corredor do "abastecimento"(onde era servida aquela lavagem) com suas bandejas à mostra! Vão!
     Só então me dei conta de que estávamos praticamente sozinhos no refeitório. Um ou outro dos "antigos" que ainda permaneciam por ali estavam de retirada, com exceção dos que ali "tiravam" serviço. Alguns de nós ainda tínhamos comida na bandeja, sem ainda ter terminando o rancho. Mesmo assim, o comando foi obedecido imediatamente, pois o medo da punição a que o "jagunço" poderia nos submeter povoava-nos a mente.
    Quando estamos todos onde ordenado, a inspeção começa. O sargento "passa em revista" um por um, olhando para as bandejas. E a cada uma que encontra com restos de comida, o seu portador recebe uma torrente de insultos. Olho para a minha e vejo que a metade do tolete de "carne de monstro" ainda está lá, junto com um pouco do repolho "a machado".
     Fico me perguntando por que demônios ele está fazendo isso. Não consigo me lembrar se tinha nos prevenido a não deixar sobrar comida na bandeja na instrução da manhã. E isso aconteceu justamente por não conseguir me concentrar na aula, por receio da punição que efetivamente nos foi dada agora há pouco. Bom, nada a fazer. Vou ter de aguentar quieto a saraivada que virá. Chega a minha vez. Só então o jagunço dá sinal de que me reconhece:
   - Então você passou, moscocéfalo! - e levantando a voz - Por que não limpou esta bandeja, seu pústula? Antes de sairmos da instrução, fui muito claro com relação a isto, NÃO FUI?
     - Senhor, eu...
     - Eu te dei permissão para falar? DEI?
     - Não, senhor! - e emendo - Permissão para a justificativa, senhor!
     - Fale, maldito!
     - Não tivemos tempo suficiente, senhor!
    - Não tiveram TEMPO? Larga a mão de ser idiota, 26! Eu dei a vocês o DOBRO DO TEMPO que terão no campo base, seu imbecil!
     - Mas, senhor...
    - Fecha essa matraca, ponderão(na gíria quer dizer aquele que pondera, ou questiona um superior ou suas ordens)! - e emenda, dando um passo para trás, olhando para todos - Quer saber, já me enchi o saco! Todo mundo vai pagar caro por esta falta!
E olha para mim novamente:
     - Pra você vai ser dobrado, filho-de-uma-quenga! - emenda novamente - Todos os que tem restos na bandeja, vão até o latão e limpem-nas. Os outros, entreguem-nas no guichê da cozinha ali!
     E aponta com o braço esquerdo para uma janelinha que dava para a cozinha anexa ao refeitório. Esse duplo processo foi breve. Os que apenas entregaram os "cochos" foram ordenados a sair e esperar em fila lá fora. Depois da limpeza e entrega é que nós pudemos nos juntar aos demais. Não sinto medo desta vez. Apenas raiva. E ela faz qualquer medo evaporar-se, por maior que seja. Ao sair, piso com firmeza e marcho altivamente. Esta foi a forma que encontrei de mostrar para aquele homem que, na tentativa de me intimidar ele apenas conseguiu aguçar a minha força de vontade e resistência moral. Iria enfrentar o que me impusesse de cabeça erguida.
Somos pela quarta vez hoje levados até a área do cerimonial. Aí eu me pergunto; porque sempre tem sido ali que pagamos os nossos pecados? Para essa ainda não achei uma boa resposta. O Barreto me chama à frente:
       - 26, venha até aqui!
Me coloco em sua frente, olhando-o nos olhos. Ele continua, dirigindo-se a todos:
     - Ao que parece, o "remédio" que lhes prescrevi antes do rancho não foi o suficiente para abrir o apetite. Neste caso, terei de dar uma dose extra para garantir que na próxima entreguem suas bandejas mais limpas do que se não tivessem sido usadas!

"Engraçadinho você, não?"

O Silveira "piruão" e o russinho ficam putos, porque já tinham pago o castigo mais cedo.
     - Muito bem, todo mundo para o chão! Pagando dez!
Quando me coloco em posição de flexão com os braços estendidos, o sargento se coloca na minha lateral direita e sem a menor cerimônia apóia seu pé esquerdo nas minhas costas, entre as omoplatas. Fico espantado. Não pude ver a reação dos demais, mas acho que devem ter ficados tão ou mais impressionados que eu.

"É agora que estou 'fudido'."

Sinto o peso do seu coturno. Em seguida, a ordem:
     - Comecem! - e continua - Contando! UM...!
Para mim, ele fala, inclinando o tronco:
     - Agora que tu vai me mostrar se é cabra bom, mesmo! Vamos ver se o que vi no exame médico foi raça ou apenas sorte... - conclui, com o sotaque baiano bem mais pronunciado.
Aí eu entendi a jogada. Ele ia me punir de qualquer jeito, mesmo se estivesse com a bandeja brilhando. O que queria mesmo era tirar a limpo os cento e cinquenta quilos que eu tinha conseguido levantar na enfermaria durante a seleção.
     O detalhe é que agora eu estava de estômago cheio e em momento algum tinha sido autorizado a sequer dobrar as mangas da gandola, mesmo com o calor que estava fazendo. Minhas mão ardem, em contato com o asfalto do pátio. Sinto que o "jagunço" aumenta a pressão, colocando o peso do corpo sobre a perna esquerda apoiada em mim. O suor brota do rosto aos borbotões, a respiração se acelera. Meu coração martela o peito, parecendo querer saltar da caixa torácica.Quando com muito custo fico com os braços novamente estendidos, para executar a sétima flexão, ouço a ordem:
     - Parados! Agora é que a coisa vai ficar legal, tropa! Ao meu comando, irão parar no ponto em que eu ordenar! Prossigam!

"Com todos os demônios, o que é isso?"

E a contagem continua:
     - OITO...OITO E UM QUARTO...

"Mas...mas..."

    - ...agora, NO MEIO! - ordena, fazendo com que interrompamos o movimento, ficando com os braços semi flexionados. E continua - EMBAIXO! NO MEIO...

"Que grande filho de uma puta...!"

     - ...EM CIMA! OITO E MEIO...
     Continuamos nessa, sob a batuta daquele maldito. Fico cada vez mais "brabo". A sessão se estende, ou melhor, se arrasta por mais tempo do que eu esperava. Quando ouço a contagem da décima sexta, estou esgotado. Ouço um zumbido nos ouvidos. A visão começa a se toldar. Sinto dores no local onde o sargento cravou sua botina, tamanha a pressão que fazia. Meus braços tremem como vara verde. Bufo e resfolego como um cavalo a toda brida. Faço todo o possível para não fraquejar agora. Se isso acontecer, nunca mais terei nem sequer uma partícula qualquer de respeito e aí estarei morto. O "jagunço" sabe disso, macaco velho que é. E por isso está tentando quebrar meu espírito a todo o custo. Nesse duelo não declarado, os outros são um mero detalhe. EU sou o alvo. Só que não vou dar esse gostinho para esse psicopata. Vou resistir, custe o que custar. Não vou ser a imagem da derrota, como tinha sido o meu pai na semana passada. Absolutamente não!
     Após a vigésima, o sargento retira o coturno das minhas costas e nos manda levantar. Com muito custo consigo me colocar novamente na vertical diante dele. E faço questão de o olhar diretamente nos olhos, de cima para baixo(por causa de sua estatura) com expressão de altivez, fazendo um leve movimento de cabeça como que dizendo: "viu só?". Ele entendeu o recado, pois fez cara de lampião antes de arrancar o couro de um inimigo. E me diz, entre dentes:
    - Está se achando o bom, "ponderão"? Você ainda não viu nada. E não perde por esperar. Me aguarde! Vou entupi-lo com o cozido que estou preparando... - e arremata, em voz mais alta - Agora volte para a formação! Acelerado!
     Antes de sair, olho-o fixamente, apertando os olhos, como que dizendo: "Estarei esperando". Presto-lhe continência e dou um "180", seguindo para o meu lugar.


Até a próxima!

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