expr:class='"loading" + data:blog.mobileClass'>

quinta-feira, 30 de abril de 2015

Crônicas de um recruta - Parte 6

Olá, amigos. Publico o sexto fascículo agora. Tentarei publicar um todos os dias. Nem sempre creio que será possível, mas vou fazer o que estiver ao meu alcance. Segue o conto:




6

     Depois de cuspir algumas vezes, praguejei de uma forma tão horrorosa que deixaria um marinheiro bêbado com vergonha. Graças à raiva que senti, levantei quase na mesma velocidade em que caí. Ao fazer a avaliação dos danos, percebi que exatamente onde estava havia um arame fino bem esticado na altura das canelas. Olhando logo à frente, vejo que em espaços iguais há vários outros, dispostos da mesma forma que o primeiro. Eu tinha caído em uma armadilha.
    Senti-me o cara mais retardado da superfície da Terra. Só depois de ter caído nesta esparrela é que entendi o que o major quis dizer:

"...caso hajam quaisquer dúvidas, quaisquer questionamentos ou necessidade de informações adicionais, dirijam-se a eles - e somente a eles - entendido?"

     Começo a me limpar da melhor forma possível, retirando o excesso de lama da roupa, e volto pelo caminho em que vim. Felizmente, o local onde caí era macio e não me machuquei. Se isto tivesse acontecido, para mim a seleção acabaria ali. Quando passo em frente à oficina, dois militares que lá estavam me vêem. Primeiro riem desbragadamente, chegando a derrubar no chão as ferramentas que tinham nas mãos. Depois se acercam de mim e um deles, um cabo moreno, mais ou menos da minha altura me pergunta:
     - Quem é você, rapaz? O que foi que houve?
O outro, um soldado de primeira classe o olha com uma cara de "como assim o que foi que houve?" Mas, nada diz. Pelo jeito, esse era um trote "manjado". Mortificado, respondo com a voz espremida porque minha garganta estava ardendo, fechada de tanta raiva e vergonha:
     - Sou o conscrito 49, nome Flávio Santos Barbosa. Estava indo para a pista de atletismo quando aconteceu...isto! - digo, olhando para minhas roupas enlameadas.
Essa movimentação chama a atenção de um terceiro sargento que estava sentado numa escrivaninha no mezanino dentro da oficina. Também ele se acercou de mim. Me lembro que ele tinha uma expressão tranquila, amigável. Solícito, me leva até uma espécie de tanque com uma torneira, onde tiro o que é possível tirar daquela sujeira toda. Depois me estende uma toalha verde onde está escrito "mat bel" na qual me enxugo.
     - Muito obrigado, senhor. Muito obrigado mesmo. - digo, ainda me sentindo ridículo.
     - Não me agradeça. Agradeça aos céus que hoje estou de bom humor, conscrito. Para onde você estava indo?
     - Para a pista de atletismo, senhor.
     - Certo. Vou providenciar alguém para te levar até lá. Vieira!
     - Senhor? - responde o soldado da oficina.
     - Acompanhe o conscrito até a área de esportes. E não pelo campo minado, entendido?
     - Sim senhor. - responde o soldado, com um inconfundível tom de ironia.
Ao dizer isto, o sargento dá um grande sorriso, deixando claro que está se divertindo com a situação. "Campo minado". Hei de me lembrar disso. E se eu for incorporado, vou encontrar aquele rebotalho de caserna e lhe mostrar o que é um verdadeiro campo minado. Ele não perde por esperar.
     - Mais uma vez obrigado senhor. - respondo, sinceramente agradecido.
     - Sai logo daqui, conscrito. - diz, num tom um pouco condescendente.
     É interessante como os sentimentos tem o poder de moldar a percepção que temos da realidade. Algumas vezes intensifica, anuvia ou até mesmo acaba modificando-a. Noutras, fornecem a motivação necessária para pensar ou fazer coisas que julgamos impossíveis. Neste caso, a minha foi a raiva. Um sentimento de desforra, de vingança até. Agora eu fazia questão de ser incorporado, porque era a única maneira de conseguir dar uma lição naquele vagabundo. O que faria, como o faria e quando não importava. Apenas o porque.
O resto da manhã daquele dia foi um borrão pra mim. É digno de nota que quase vinte anos depois, lembro-me em detalhes de praticamente todas as minhas experiências, com uma precisão que às vezes me surpreende. Mas, quando tento acessar este período específico, muito pouca coisa consigo recuperar. Lembro-me apenas em pinceladas difusas da chegada ao campo de provas, dos olhares de escárnio dos outros conscritos. De como os testes físicos foram puxados, de uma ou outra aporrinhação que tive de aguentar da parte do "viking" ou quando ele via a minha "gana" em tentar impressioná-lo:
     - O que é isso, 49? Tá querendo ganhar uma medalha?
     O que ficou muito bem gravado foi o diálogo decisivo que tive com os dois aplicadores dos testes. Última prova: teste de barra fixa. O conscrito tem um minuto para fazer 10 flexões de braço nesta barra horizontal a mais de dois metros do chão. Executo as primeiras oito com algum esforço, mas iria terminá-las sem problemas. No começo da nona, senti uma forte fisgada num dos ligamentos do braço direito. Não sei dizer até hoje se foi por causa do desgaste dos exercícios anteriores ou por causa da queda que sofri.
     Fiz um esforço sobre humano na tentativa de completá-la. Em vão. Solto a barra, caio de pé e fecho os olhos por um momento, inspirando profundamente. Sinto uma avalanche de frustração invadir-me. A articulação do cotovelo em fogo. A amarga sensação da derrota. Abro os olhos e levanto a cabeça devagar, olhando para o capitão que também me olha, impassível. O suboficial entra em meu campo de visão e se acerca, tomando a palavra e respondendo a uma interrogação que ele não ouviu de mim, mas viu em meu rosto:
     - É isso 49. Reprovado. Não completou o exercício.
E depois de uma pequena pausa:
     - Sinto muito.
     - Mas senhor, não o completei porque tive um pequeno problema no braço, apenas isto. Posso repetir o teste.
Olho para novamente o capitão, que continua a me fitar com aquele jeito gélido, sem expressão. Passo para o rosto do suboficial, que tem uma contida expressão de consternação. Acho que o impressionei. É a minha deixa:
     - Senhor, peço apenas uma chance para repetir o teste, por favor. - insisto.
     - Impossível, 49. Não existe tal provisão. - quem responde é o oficial.
O suboficial Macaris olha em direção do capitão. Não pode contrariá-lo sem correr o risco de ter problemas. Mas, ainda assim lhe pede a palavra:
     - Senhor, posso expressar minha opinião?
O oficial pensar por uns segundos e diz:
     - Fale, Macaris.
    - O senhor está correto quando diz que não há provisão para uma segunda oportunidade. Porém, para toda regra existe a sua exceção. E a exceção - como o próprio nome já diz - só pode ser aberta para que não se cometam injustiças. O que quero dizer senhor é que este jovem foi além do que se exigia em todas as outras etapas. Concluo então que não seria justo exigir dele agora algo que estaria apenas por hora além dos seus limites. Digamos que o esforço extra nas outras provas compensaria o pouco que faltou nesta, senhor. É o que eu penso. - argumenta ele, com um condescendência incomum para um militar.
     Enquanto ouve, o capitão coloca as duas mãos na cintura e abaixa a cabeça, pensativo, ficando assim por um tempo que me pareceu uma eternidade. Devagar ele a levanta e faz um ligeiro sinal afirmativo para o "sub". Sem dizer palavra, se afasta em direção às arquibancadas, onde estava um grupo de uns 80 outros.
     - Muito obrigado senhor! Não tenho palavras para expressar a minha gratidão. - digo efusivamente.
Impassível, o suboficial responde:
     - Não me agradeça conscrito. Principalmente porque sei que irá amaldiçoar até a minha décima geração quando e se estiver ralando no treinamento básico. Não se esqueça que ainda não fez o psicotécnico. - Ponderou, mesmo sabendo que este último teste é apenas uma formalidade, tendo peso muito pequeno no conjunto geral porque, afinal de contas, nem sempre o Exército está à procura dos mentalmente sãos(se é que me entende).
     - Mais uma coisa. - arrematou - Eu não nasci ontem, você sabe. Há anos eu não via alguém fazer todo este esforço - para não falar exagero - nos testes físicos. Nem mesmo quem estava louco para ser incorporado. Tem a ver com isso aí, não é? - disse ele, apontando com a cabeça para minhas roupas ainda com manchas de terra.
     - Não vou lhe esconder isso, senhor. É a verdade. - fui sincero com ele, dada a “colher de chá” que me deu.
     - Bom, se é o que você quer, vai ter a sua chance. Pegue suas coisas e vá se juntar aos outros.

Dito isto, pegou a prancheta - contendo todos os certificados de alistamento daquele grupo – que estava em cima de uma mesa portátil e virou-se, seguindo em direção do prédio da administração do quartel.


Continua....

Até a próxima, meu povo!

Nenhum comentário:

Postar um comentário