Olá, amigos. Publico o sexto fascículo agora. Tentarei publicar um todos os dias. Nem sempre creio que será possível, mas vou fazer o que estiver ao meu alcance. Segue o conto:
6
Depois
de cuspir algumas vezes, praguejei de uma forma tão horrorosa que
deixaria um marinheiro bêbado com vergonha. Graças à raiva que
senti, levantei quase na mesma velocidade em que caí. Ao fazer a
avaliação dos danos, percebi que exatamente onde estava havia um
arame fino bem esticado na altura das canelas. Olhando logo à
frente, vejo que em espaços iguais há vários outros, dispostos da
mesma forma que o primeiro. Eu tinha caído em uma armadilha.
Senti-me
o cara mais retardado da superfície da Terra. Só depois
de ter caído nesta esparrela é que entendi o que o major quis
dizer:
"...caso
hajam quaisquer dúvidas, quaisquer questionamentos ou necessidade de
informações adicionais, dirijam-se a eles - e somente a eles -
entendido?"
Começo
a me limpar da melhor forma possível, retirando o excesso de lama da
roupa, e volto pelo caminho em que vim. Felizmente, o local onde caí
era macio e não me machuquei. Se isto tivesse acontecido, para mim a
seleção acabaria ali. Quando passo em frente à oficina, dois
militares que lá estavam me vêem. Primeiro riem desbragadamente,
chegando a derrubar no chão as ferramentas que tinham nas mãos.
Depois se acercam de mim e um deles, um cabo moreno, mais ou menos da
minha altura me pergunta:
-
Quem é você, rapaz? O que foi que houve?
O
outro, um soldado de primeira classe o olha com uma cara de "como
assim o que foi que houve?" Mas, nada diz. Pelo jeito, esse era
um trote "manjado". Mortificado, respondo com a voz
espremida porque minha garganta estava ardendo, fechada de tanta
raiva e vergonha:
-
Sou o conscrito 49, nome Flávio Santos Barbosa. Estava indo para a
pista de atletismo quando aconteceu...isto! - digo, olhando para
minhas roupas enlameadas.
Essa
movimentação chama a atenção de um terceiro sargento que estava
sentado numa escrivaninha no mezanino dentro da oficina. Também ele
se acercou de mim. Me lembro que ele tinha uma expressão tranquila,
amigável. Solícito, me leva até uma espécie de tanque com uma
torneira, onde tiro o que é possível tirar daquela sujeira toda.
Depois me estende uma toalha verde onde está escrito "mat bel"
na qual me enxugo.
-
Muito obrigado, senhor. Muito obrigado mesmo. - digo, ainda me
sentindo ridículo.
-
Não me agradeça. Agradeça aos céus que hoje estou de bom humor,
conscrito. Para onde você estava indo?
-
Para a pista de atletismo, senhor.
-
Certo. Vou providenciar alguém para te levar até lá. Vieira!
-
Senhor? - responde o soldado da oficina.
-
Acompanhe o conscrito até a área de esportes. E não pelo campo
minado, entendido?
-
Sim senhor. - responde o soldado, com um inconfundível tom de
ironia.
Ao
dizer isto, o sargento dá um grande sorriso, deixando claro que está
se divertindo com a situação. "Campo minado". Hei de me
lembrar disso. E se eu for incorporado, vou encontrar aquele
rebotalho de caserna e lhe mostrar o que é um verdadeiro
campo minado. Ele não perde por esperar.
-
Mais uma vez obrigado senhor. - respondo, sinceramente agradecido.
-
Sai logo daqui, conscrito. - diz, num tom um pouco condescendente.
É
interessante como os sentimentos tem o poder de moldar a percepção
que temos da realidade. Algumas vezes intensifica, anuvia ou até
mesmo acaba modificando-a. Noutras, fornecem a motivação necessária
para pensar ou fazer coisas que julgamos impossíveis. Neste caso, a
minha foi a raiva. Um sentimento de desforra, de vingança até.
Agora eu fazia questão de ser incorporado, porque era a única
maneira de conseguir dar uma lição naquele vagabundo. O que
faria, como
o faria e quando
não importava. Apenas o porque.
O
resto da manhã daquele dia foi um borrão pra mim. É digno de nota
que quase vinte anos depois, lembro-me em detalhes de praticamente
todas as minhas experiências, com uma precisão que às vezes me
surpreende. Mas, quando tento acessar este período específico,
muito pouca coisa consigo recuperar. Lembro-me apenas em pinceladas
difusas da chegada ao campo de provas, dos olhares de escárnio dos
outros conscritos. De como os testes físicos foram puxados, de uma
ou outra aporrinhação que tive de aguentar da parte do "viking"
ou quando ele via a minha "gana" em tentar impressioná-lo:
-
O que é isso, 49? Tá querendo ganhar uma medalha?
O
que ficou muito bem gravado foi o diálogo decisivo que tive com os
dois aplicadores dos testes. Última
prova: teste de barra fixa. O conscrito tem um minuto para fazer 10
flexões de braço nesta barra horizontal a mais de dois metros do
chão. Executo as primeiras oito com algum esforço, mas iria
terminá-las sem problemas. No começo da nona, senti uma forte
fisgada num dos ligamentos do braço direito. Não sei dizer até
hoje se foi por causa do desgaste dos exercícios anteriores ou por
causa da queda que sofri.
Fiz
um esforço sobre humano na tentativa de completá-la. Em vão. Solto
a barra, caio de pé e fecho os olhos por um momento, inspirando
profundamente. Sinto uma avalanche de frustração invadir-me. A
articulação do cotovelo em fogo. A amarga sensação da derrota.
Abro os olhos e levanto a cabeça devagar, olhando para o capitão
que também me olha, impassível. O suboficial entra em meu campo de
visão e se acerca, tomando a palavra e respondendo a uma
interrogação que ele não ouviu de mim, mas viu em meu rosto:
- É isso 49. Reprovado. Não completou o exercício.
E
depois de uma pequena pausa:
- Sinto muito.
- Mas senhor, não o completei porque tive um pequeno problema no
braço, apenas isto. Posso repetir o teste.
Olho
para novamente o capitão, que continua a me fitar com aquele jeito
gélido, sem expressão. Passo para o rosto do suboficial, que tem
uma contida expressão de consternação. Acho que o impressionei. É
a minha deixa:
- Senhor, peço apenas uma chance para repetir o teste, por favor. -
insisto.
- Impossível, 49. Não existe tal provisão. - quem responde é o
oficial.
O
suboficial Macaris olha em direção do capitão. Não pode
contrariá-lo sem correr o risco de ter problemas. Mas, ainda assim
lhe pede a palavra:
- Senhor, posso expressar minha opinião?
O
oficial pensar por uns segundos e diz:
-
Fale, Macaris.
-
O senhor está correto quando diz que não há provisão para uma
segunda oportunidade. Porém, para toda regra existe a sua exceção.
E a exceção - como o próprio nome já diz - só pode ser aberta
para que não se cometam injustiças. O que quero dizer senhor é que
este jovem foi além do que se exigia em todas as outras etapas.
Concluo então que não seria justo exigir dele agora algo que
estaria apenas por hora além dos seus limites. Digamos que o esforço
extra nas outras provas compensaria o pouco que faltou nesta, senhor.
É o que eu penso. - argumenta ele, com um condescendência incomum
para um militar.
Enquanto
ouve, o capitão coloca as duas mãos na cintura e abaixa a cabeça,
pensativo, ficando assim por um tempo que me pareceu uma eternidade.
Devagar ele a levanta e faz um ligeiro sinal afirmativo para o "sub".
Sem dizer palavra, se afasta em direção às arquibancadas, onde
estava um grupo de uns 80 outros.
-
Muito obrigado senhor! Não tenho palavras para expressar a minha
gratidão. - digo efusivamente.
Impassível,
o suboficial responde:
-
Não me agradeça conscrito. Principalmente porque sei que irá
amaldiçoar até a minha décima geração quando e se
estiver ralando no treinamento básico. Não se esqueça que ainda
não fez o psicotécnico. - Ponderou, mesmo sabendo que este último
teste é apenas uma formalidade, tendo peso muito pequeno no conjunto
geral porque, afinal de contas, nem sempre o Exército está à
procura dos mentalmente sãos(se é que me entende).
-
Mais uma coisa. - arrematou - Eu não nasci ontem, você sabe. Há
anos eu não via alguém fazer todo este esforço - para não falar
exagero - nos testes físicos. Nem mesmo quem estava louco para ser
incorporado. Tem a ver com isso aí, não é? - disse ele, apontando
com a cabeça para minhas roupas ainda com manchas de terra.
-
Não vou lhe esconder isso, senhor. É a verdade. - fui sincero com
ele, dada a “colher de chá” que me deu.
-
Bom, se é o que você quer, vai ter a sua chance. Pegue suas coisas
e vá se juntar aos outros.
Dito
isto, pegou a prancheta - contendo todos os certificados de
alistamento daquele grupo – que estava em cima de uma mesa portátil
e virou-se, seguindo em direção do prédio da administração do
quartel.
Continua....
Até a próxima, meu povo!
Nenhum comentário:
Postar um comentário