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segunda-feira, 27 de abril de 2015

Crônicas de um recruta - Parte 3

     Olá amigos, como vão?

     Parece que o Flávio está ganhando vida própria. Eu diria que estou sendo conduzido por ele, e não a contrário...
     É impressionante como as ideias, lembranças e pesquisas vão se entrelaçando quase como se tivessem vontade própria. Passei praticamente o final de semana inteiro escrevendo. Para o seu deleite (oh! pretensão...) adiantei vários fascículos das impressões de um candidato a "reco".

     Bom, sem mais preâmbulos, com vocês a parte 3:




3


     Seis e dez, seis e vinte, seis e meia, dez pras sete... "Mas que diabo! Onde estão esses cabeças quadradas? Será possível que nos fizeram acordar tão cedo apenas para nos dar um chá de banco?" Não conseguia entender o porque desta demora toda. Isto contrariava a fama dos milicos de serem cumpridores do regulamento, metódicos e... pontuais! Parece que a minha mãe estava adivinhando as coisas, eu ia ficar um bom tempo naquele quartel aquele dia.
     Já estava ficando impaciente quando às sete em ponto cinco "rajados" entraram: Dois oficiais, um "sub" e dois primeiro-sargentos. O oficial mais velho era um major, já grisalho, com olhos escuros e duros, um bigodinho preto à la Freddie Mercury bem aparado e um porte um tanto encarquilhado. O outro era bem mais jovem, enorme e troncudo como um viking, olhos azuis e bochechudo, com cara daqueles piás criados a leite-com-pera. Devia ter uns bons dois metros de altura. Dos sargentos, um deles eu já "conhecia". Foi o magrelo que me conduziu até ali. O outro, um cara mais baixo, só que tão troncudo como o "viking". Parecia estar de mau humor, com a cara fechada e jeitão de jagunço. O suboficial era negro, altura mediana e tinha um ar de ser um sujeito boa praça. Era o único que aparentava estar mais à vontade, e não empertigado como os outros que - deduzo eu - deviam achar que estavam num sete de setembro, desfilando para aqueles civis.
     O soldado encarregado de nos "vigiar" afastou-se do seu "corner", bateu continência, virou-se na direção da entrada e saiu. O major, seguido dos demais, subiu numa espécie de palco na parte da frente do auditório e postou-se atrás de uma tribuna, com os outros se posicionando: à esquerda, o "viking" e o "sub"; à direita, os sargentos.
     - Bom dia a todos! - disse o major, numa voz grave, parecida com a do Renato Gaúcho, locutor de uma das rádios da "cidade sorriso"(num sei daonde!).
Um muxoxo em resposta:
     - Bom dia...
    - Sejam bem vindos ao Vigésimo Batalhão de Infantaria Blindada Sargento Max Wolff Filho. Eu sou o major Langarotti. Os senhores por acaso sabem por que estão aqui?
Outro muxoxo:
     - Sim. - responderam, como um bando de crianças cansadas.
     - Não ouvi! - asseverou ele.

"Então vá fazer uma lavagem nas orelhas. Velho como está, deve fazer um tempão que estão entupidas de cera."

     - Sim, senhor! - respondeu a cambada, agora num tom mais alto e dando ênfase no "senhor".
    - Muito bem. Antes de começar, vou lhes transmitir as informações de que necessitarão no decorrer da seleção, com o fim de não ocorrerem mal-entendidos ou transtornos, bem como para que seja organizada e o mais breve possível. Primeiramente, vou lhes apresentar os que comigo aqui estão, a começar pelo capitão Kapp e o suboficial Macaris, à minha esquerda. À minha direita, os primeiro-sargentos Guimarães(o "vareta") e Barreto(o "jagunço"). Estes quatro homens serão os responsáveis por vocês daqui até o final do processo, portanto, caso hajam quaisquer dúvidas, quaisquer questionamentos ou necessidade de informações adicionais, dirijam-se a eles - e somente a eles - entendido? - disse ele, dando também ênfase no segundo "somente".
Aí eu fiquei encucado. Por que somente a eles? Mais tarde eu iria descobrir.
     - ...Sim, senhor!
    - Ótimo! Vocês passarão por cinco etapas de testes: exames médicos, odontológicos, de integridade física e equilíbrio, força e resistência, e psicotécnico. Lembrando que todos estes tem caráter eliminatório e classificatório. Os eliminados em qualquer uma das fases terão o seu CAM carimbado, e irão dirigir-se à área do cerimonial para o juramento à bandeira, após o que poderão se retirar imediatamente das dependências do batalhão e aguardar correspondência contendo o seu CDI. Os senhores sabem o que é o CDI?
     - Não, senhor!
    - O Certificado de Dispensa de Incorporação. Este documento atesta que os senhores não foram aproveitados pelas Forças Armadas, mas que estão quites com suas obrigações militares. Após cada etapa, os classificados devem se postar imediatamente fora dos locais onde foram avaliados, aguardando em ordem e silêncio o responsável pela próxima, que irão por sua vez conduzi-los até o PT(posto de testes, "melhor ir se acostumando com a siglas, parceiro!") seguinte. Antes de sair deste recinto, cada um de vocês receberá um número de matrícula, e será reconhecido por conscrito número tal. Prestem atenção, porque é por ele que serão identificados e chamados, entendido?
     - Sim, senhor!
   - Na primeira etapa, os senhores passarão por uma bateria de exames médicos com o fim de averiguar suas reais condições de saúde. Em seguida, os exames odontológicos. O sargento Barreto se encarregará de conduzi-los até a enfermaria, onde o corpo médico do batalhão já está a postos para o cumprimento desta tarefa. Alguma dúvida?
Sabe Deus por que cargas d'água(contrariando toda a minha índole), levantei a mão - minha amaldiçoada mão - que pareceu ter vida própria naquele momento.
    - Fale, conscrito. - disse o major, olhando em minha direção.( Essa é a vida, nem milico sou ainda, e já não tenho mais identidade...)
   - Senhor, desculpe pela pergunta, mas, no carimbo do meu certificado diz que era para estarmos aqui às seis, e agora já são sete e...
    - Você está correto, conscrito - cortou ele de forma brusca - mas está escrito em algum lugar aí a hora em que a seleção iria começar?

"Puta merda, a segunda paulada em menos de duas horas... Toma, caboclo burro!"

     - É, bem... não, senhor... eu...
     - Algum problema, então? - cortou-me novamente, alterando a voz e fuzilando-me com o olhar.
Abaixo a cabeça, com a cara em fogo, e recomeço a gaguejar:
     - N-não, se-se... de fo-forma al-al-al....
     - Ótimo. - ruge ele, interrompendo-me pela terceira vez.
E dirigindo-se a todos os demais, ele fala, um pouco mais devagar, a fim de ter certeza de que foi perfeitamente compreendido:
    - Um importante lembrete. Quero lhes deixar bem claro uma coisa: Tecnicamente, vocês todos ainda são civis, mas, a partir do momento em que entraram nas dependências do exército a fim de serem selecionados, os senhores estão sob nossa responsabilidade e jurisdição, e portanto, ficam obrigados a obedecer nossas leis e regulamentos, até que não o seja mais necessário. Até lá, todo e qualquer ato faltoso ou de indisciplina será punido de acordo. Fui claro senhores?
Antes de ele terminar, levanto novamente a cabeça e percebo que o major está me olhando fixamente.
     - ...Sim, senhor. - responde novamente a patota de forma tíbia, intimidada com aquela ameaça velada.
      - Eu não ouvi, conscritos!
      - Sim, SENHOR!
      - Ótimo! Passo a palavra ao sargento Barreto. Bom dia e boa sorte a todos.- diz, batendo na fronte da sua boina preta, próximo ao broche com o brasão do Exército afixado nela. Os demais fardados lhe prestam continência e em seguida ele se retira.
     Boa sorte? Pelo jeito como falou, parecia até que estávamos disputando uma bolada, um carrão importado, ou ainda prestando concurso para um órgão público qualquer. Esse camarada só deveria estar brincando.
     - ...Bom dia senhores! Visto que já fui apresentado e designado pelo major, e que todas as instruções já lhes foram transmitidas, nada me resta a fazer a não ser distribuir suas matrículas. Formem quatro filas em frente ao palco, para que cada um de vocês pegue a sua. O primeiro da fila pega a sua identificação, cola-a em um local visível e volta imediatamente para o seu lugar, e assim subsequentemente, ok? - disse ele, com uma voz mais aguda do que a do major, com um leve sotaque baiano.
     Vendo que o povão começou a se ensebar muito na formação das filas, o "jagunço" começa a falar num tom bem mais alto, batendo palmas:
     - Vamos, vamos, vamos cambada! Não temos o dia todo!

"Agora eles estão com pressa?"

     Finalmente, depois desse tanger de gado, elas foram formadas, se estendendo por entre os espaços das cadeiras do auditório. Cada um dos quatro "rajados" se posicionou diante de uma, com um rolo de adesivos numerados sequencialmente. Como eu estava sentado em uma das primeiras fileiras, fiquei na sexta posição na segunda fila, da esquerda para a direita. Em apenas uns três minutos, eu deixei de me chamar Flávio Santos Barbosa(pelo menos por aquela manhã), para ser o conscrito 049.
     Comecei a sorrir por dentro, apesar da "mijada" que tinha levado há pouco. O "49" era o soldado Didi, d'Os trapalhões, que eu adorava assistir quando guri, ali por meados da década de oitenta. Mera coincidência?
Após o término da marcação da boiada, o "jagunço" diz:
     - Atenção! Atenção, senhores! - eleva a voz, por causa de uma pequena algazarra que se formou - Tenho mais um lembrete importante: Mantenham os seus CAM's sempre à mão. Não os percam em hipótese alguma. Ele é o seu passaporte de trânsito pelas dependências do batalhão e comprovante de acesso às fases da seleção. Sem ele, não poderão sequer sair desta sala, nem participar do processo. Caso o documento seja extraviado, seu responsável será retido e encaminhado para o prédio da administração para esclarecimentos, entendido?
     - Sim, senhor! - responderam, não em uníssono, porque alguns - os esperançosos - ainda estavam se olhando, deslumbrados, como se aquela mera etiqueta numerada fosse um fardamento completo...
     - Muito bem! Agora, quero que se forme uma fila próxima à saída. Os primeiros quarenta, dirijam-se até a porta. Imediatamente. - ordenou ele.
Após esta ordem - por incrível que pareça - a macacada praticamente toda começou a se olhar outra vez, para se certificar de qual número era o seu. Num lance rápido, olhei para o "jagunço", que não conseguiu deixar de revirar os olhos, transparecendo na sua expessão mal humorada:

" Puta que o pariu...Mas que bando de moscocéfalos!"

     - Vamos com isso! Primeiros quarenta, em fila! - repetiu, já num tom de voz que exalava exasperação.
Não me ocorreu de olhar para os outros "camuflados", mas poderia jurar que eles também não estavam lá muito contentes com a tarefa.
     Os militares podem ter - no imaginário das pessoas em geral - muitas virtudes. Mas a empatia - e principalmente a paciência - definitivamente não estão entre elas. Vim a aprender ao longo da minha experiência que quando se está com um problema, "foda-se você". Se está enfrentando uma situação muito dificil durante um treinamento, instrução ou manobra pela qual o seu superior já passou algum dia (ou talvez não, não importa), nunca, jamais, never, jameé peça compreensão ou alívio, muito menos penico. Ele te fará conhecer o inferno. Vai por mim.
     É claro, estou falando dos superiores dentro da hierarquia militar. Mas, como em todos os lugares do mundo, há as suas honrosas excessões. Raras, mas existem. Quanto à soldadesca, em geral reina um espírito de camaradagem e "spirit de corps" justamente porque - ao meu ver - são todos companheiros de infortúnio. Mas, há que se tomar certos cuidados - por duas razões - em especial se você é um "reco" recém engajado. Primeiro, porque existe no quartel aquela tradição cretina do "trote" dos "antigos", que não perdem uma oportunidade de sacanear os novatos, levando-os a se meter em situações humilhantes, ridículas, ou até mesmo perigosas. Segundo, porque como em qualquer outro tipo de corporação - e na militar é onde estes tipos se multiplicam como ratos - sempre há os puxas-saco e dedos-duro, que ficam sempre na moita, só esperando alguém fazer uma "cagada" para ir correndo "dar o serviço", com o intuito de usar a cabeça do pobre diabo como degrau de escada.
     CAM's devidamente conferidos. Fila formada com os primeiros quarenta, o "jagunço" à testa, lá se foram eles "marchando" em direção à enfermaria. O capitão Kapp se pronuncia:
     - Aguardem, que dentro de aproximadamente 20 minutos o sargento Barreto voltará para conduzir a segunda leva, que será composta de mais 40 dos senhores. Fiquem atentos. Quando ele chegar, a fila já deverá estar formada, a fim de ganharmos tempo, entendido? - disse ele, numa voz que me lembrava a do Boris Casoy, com um inconfundível sotaque de "catarina".
     - Sim, senhor.
     - Quanto a mim - recomeça ele - estarei a postos na pista de atletismo, aguardando os selecionados das etapas anteriores. O suboficial Macaris estará comigo. O sargento Guimarães ficará na área do cerimonial, no aguardo dos não selecionados, para o juramento à bandeira. Isto é tudo. Boa sorte a todos.


     Dito isto, ele sai, seguido pelo "sub". Logo em seguida, o soldado que nos "vigiava" retorna e se posta no canto onde estava antes, e fica em posição de "descanso". Na sequência, sai o "vareta". Toda esta preleção não durou mais do que quinze minutos. A mim pareceu muito mais. Como fiquei designado para o segundo "lote" conforme a ordem das "matrículas", nada mais pude fazer a não ser sentar e esperar, mergulhando outra vez em minhas reflexões.

     
     Continua...

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