Saudações, nobre leitores.
Parece que aos poucos estou me tornando mais prolixo. Acontece que o meu cérebro está em plena reação química:
Quando se começa, quase nunca se consegue deter o processo, e quando se consegue, mesmo assim nada será como antes....
Bom, é aquela questão. Quando se faz o que se gosta, isto se torna uma espécie de vício, e pra lhes ser sincero, estou começando realmente a tomar gosto pela coisa.
Enfim, sem mais delongas, a parte 2:
2
Já
ouviram alguma vez aquele ditado que diz “quando se olha para a
chaleira ela nunca ferve”? Pois é. Esta única frase resume com
perfeição o período entre o dia em que me alistei e o dia em que
tive de madrugar para me apresentar no “20”. Não que durante
este período eu estivesse na mais absoluta inatividade, mas é que,
sem a escola e sem precisar estudar para nada, não tinha muita coisa
com que preencher os meus dias a não ser ver TV - é claro - não
mais do que uma hora por dia(não tenho saco pra ficar na frente dela
por mais tempo que isso), ler alguma coisa( também não por muito
tempo, as opções eram poucas e a biblioteca mais próxima de casa
era a Biblioteca Pública, no centro da cidade), jogar conversa fora
com meu irmão mais novo(ou ajudá-lo com seu dever de casa), ou
ainda fazer pequenos “bicos”(carpir o exíguo lote da dona
Aurora, ou puxar terra pro vizinho da frente aterrar o seu quintal
dos fundos). Parece muita coisa, mas isso tudo ocupou na verdade não
mais do que umas três ou quatro horas por dia. O restante era só um
monte infinito de tédio.
A única
coisa de que me lembro com uma nitidez fora do comum neste período
foi o dia em que completei 18 anos, em 25 de janeiro. Nesse dia, nada
de festa, nem nada desse tipo, apenas aconteceu de meu pai me dizer,
à noite, entrando na sala, após chegar do trabalho:
- Meus
parabéns, Flávio. A partir de hoje, você é um homem. - disse o
velho, naquele seu inconfundível linguajar vago.
- Obrigado,
pai. - respondi, murcho.
Após
isto, simplesmente virou as costas e seguiu em direção à cozinha.
Poxa... pensei que ao menos ele me daria um abraço, um bom conselho
paternal, ou ainda fazer-se orgulhoso pelo fato de seu primogênito
atingir a assim chamada maioridade. Que nada! Mas, pensando melhor,
talvez eu tivesse estranhado se fizesse isso, dado o padrão de
comportamento dele. Para mim, não soaria verdadeiro. Neste caso,
melhor que as coisas foram como foram. Quanto à minha mãe, bom,
deixa pra lá.
Dez de
fevereiro, quatro e dez da matina. Sou acordado bruscamente por um
velho despertador de corda que deve ser mais velho que eu. Ao
levantar da cama, tonto de sono, me ocorre que este velho aparelho já
foi jogado contra a parede muitas vezes e, no entanto, continua aí,
firme e forte a nos lembrar de que “a vida é dura só pra quem é
mole.” Hum...será mesmo? Fácil criticar quem tem fome quando se
está de bucho cheio...
Eh? Você
aí! - me puxo a orelha – Acorda! Para de sonhar porque a realidade
está te esperando!
Então
eu noto através da porta do quarto entreaberta que a luz da cozinha
está acesa, e que minha mãe está a lidar com o café. Fico
verdadeiramente surpreso, porque faziam anos que ela não acordava
tão cedo. Pelo jeito, este vai ser um dia incomum. Levanto, me
troco, lavo a cara, vou escovar os dentes e depois entro na cozinha.
- Bom
dia, Flávio. - diz.
- Bom
dia, mãe. Por que acordada estas horas? - perguntei, mesmo a
resposta sendo óbvia.
- Bem,
o seu compromisso vai começar muito cedo, e como acho que você
vai ficar bastante tempo por lá, precisa de um café da manhã
reforçado.
- Poxa,
obrigado mãe.
- Não
há de quê.
“Que
bicho mordeu ela?” Ah, não importa. Bom mesmo é que vou sair de
casa com o porão cheio e, o melhor de tudo, não precisei fazer
nada!
Saio de
casa às quatro e cinquenta para mergulhar na escuridão, a rua mal
iluminada pelas poucas lâmpadas que não foram quebradas pela
molecada da vila, na falta de algo melhor para se fazer. Por sorte, o
alimentador já estava vindo, assim fiquei pouco tempo no ponto.
Melhor assim. Estava frio e nunca foi uma boa ideia ficar sozinho
numa parada de ônibus em plena madrugada, ainda mais levando-se em
consideração a “quebrada” onde eu morava.
Cerca de
uma hora depois, desço do “latão”na avenida Erasto Gaertner,
quase em frente à Base Aérea. Chego até o portão principal e me
apresento ao sentinela. O sujeito olha para o documento que lhe
apresento, e chama outro militar, que o tira bruscamente da mão do
soldado, dá uma olhada de relance no papel e se dirige a mim.
Sacudindo o CAM no ar e depois apontando com o dedo a parte superior
do documento. Fala com rispidez:
- O
que está escrito aqui rapaz?
- Como?
- perguntei, desorientado.
- Eu
disse: O que está escrito AQUI? - perguntou novamente, mais
ríspido ainda.
- Ahn...
Ministério da Defesa...
Ele vira
o documento:
- E
nesse carimbo aqui? O que diz? - insiste ele, sempre apontado com o
dedo.
Olho em
volta, e depois de ver melhor o maldito carimbo, começo a gaguejar
quando me dou conta da minha estupidez:
- Diz....
q-que e-eu...é...apres-presentar...20...
- Aqui
por acaso é o “20”?
- Nã-não,
senhor.
- O
“20” é lá! Entendeu? - Grita ele, apontando com o braço
esquerdo para a entrada do batalhão, a uns trezentos metros atrás
de onde estávamos, do mesmo lado da avenida.
- S-sim...ahn...se-se...
- CAI
FORA DAQUI! - berra outra vez, devolvendo o meu miserável papel.
Não sei
se por conta da pressa, ou se por conta deste primeiro tratamento (de
choque), saí correndo na direção indicada, me apresentando desta
vez no local correto. O sentinela me indicou o outro militar a quem
eu deveria me dirigir, e, acompanhado por este sargento(tão magro
que parecia uma vareta enfiada dentro de uma gandola), fui levado
através de um grande pátio interno até um grande auditório na
parte da frente do quartel, onde já estavam uns trezentos
indivíduos. A fina flor da juventude pobre de Curitiba.
Naquela
época - como creio que deve ser até hoje – o “20” era um
quartel instalado numa estrutura antiquíssima, construída, segundo
vim a saber mais tarde, bem antes da Segunda Guerra. Em 1921, para
ser mais preciso. Desde então, nada tinha sido feito a não ser
pinturas, manutenção e uma ou outra parede derrubada para a
acomodação das necessidades do aquartelamento. Está instalado numa
área enorme, de talvez uns 20 hectares, encravado no meio de uma das
áreas mais nobres de Curitiba. É subdividido em diversos prédios
não interligados onde funcionam em cada um deles a administração,
intendência, refeitórios dos praças e dos oficiais, oficina,
enfermaria, casa da guarda, armaria, dormitórios, auditório,
almoxarifado, barracões de manutenção básica, entre outros.
Também há uma grande área aberta onde estão as áreas de
instrução de tiro, pista de atletismo, campo de futebol, área do
cerimonial, horta, pista de obstáculos para exercícios da
infantaria, pista de treinamento de condução de viaturas e
blindados, etc. Por último, um predinho em separado em frente da
área do cerimonial onde ficava(ou fica) instalada a sala do
comandante, bem como as salas adjacentes do “oficial de dia” e
dos demais responsáveis pela administração direta e indireta do
batalhão.
Bom,
durante a espera a que fomos submetidos, não só pude observar quem
estava ali, mas também imaginar os seus motivos. Algumas
caras esperançosas, outras tristes. A maioria assustadas, sem dúvida
com medo das histórias que certamente ouviram, narrando os
sofrimentos e humilhações, reais ou fictícias que o
filho-da-prima-do-cunhado-da-irmã-de-não-sei-quem teria sofrido
durante o seu tempo de serviço.
Alguns dos que tinham as caras esperançosas nem sequer sentaram-se.
Ficaram de pé, naquela típica pose de “descansar!” que os
militares adotam quando estão recebendo instrução, e que aqueles
recrutas já engajados gostam de fazer dentro dos terminais quando
estão indo pra casa fardados, estufando o peito para as menininhas
que os olham, sabe, com aquele olhar pidão, e para alguns outros
rapazes, que os olham com franca inveja...
Quanto aos sentados, a maioria não se atrevia nem sequer a levantar
a cabeça. Ficavam olhando o tempo todo para o piso de tacos daquele
auditório, brilhando de uma forma que eu nunca tinha visto
antes.(Não pude deixar de pensar, com ironia: “Quantas línguas
foram necessárias para deixá-lo assim?”) Acho que estavam
intimidados com o soldado que fora deixado na sala, postado numa das
quinas do recinto, com a tarefa de vigiar-nos – creio eu – até
que o pessoal responsável pela seleção se dignasse a aparecer. Por
falar no dito cujo, só reparei em sua presença após alguns
minutos, depois de tecer estas considerações que acabei de narrar.
Comecei então a observá-lo, discretamente, para tentar entender
pelo que via se a vida de um “pé-de-poeira” era tudo aquilo que
dizia a lenda. Tarefa difícil, aliás, impossível. É como tentar
escrever a resenha de um livro só pela capa. O que deu pra notar é
que o “bicho” não exprimia nada naquela sua pobre fisionomia
opaca de idiota. Talvez tivesse passado a noite em claro, de serviço
por alguma infração cometida, ou estava morrendo de tédio - assim
como eu – naquela sua imobilidade forçada. Outra vez, comecei a
lembrar daquela música do Gabriel o Pensador:
“...serviço
militar obrigatório é uma incoerência
um ano
sem mulher, batendo continência
um ano
sem mulher,
só
ralando (e o salário)
não
leve a mal mas isso é coisa pra otário!...”
Silêncio
impressionante. Ninguém fala, ninguém se mexe. E assim fico
eu, estacionado lá como um carro quebrado.
Bom, por hora é isso.
Logo, logo, a parte 3.
Aguardem!
Continue assim...
ResponderExcluirGabriel o Pensador - Indecência Militar
ResponderExcluirhttps://www.youtube.com/watch?v=ds13OylOe74
http://letras.mus.br/gabriel-pensador/96134/
ResponderExcluirIndecência Militar
Gabriel O Pensador
Na porta do local do alistamento militar (indecência) esperando pela hora de entrar
De saco cheio estava eu lá (paciência)
Sem nenhuma mulher pra agarrar e nenhum som pra escutar
E um monte de marmanjo do meu lado eu vi
Então pensei: "Porra. O quê que eu tô fazendo aqui?"
(Pergunta sem resposta) e raiva lá dentro
Foi assim que eu fiz o rap pra passar o tempo
Porque o serviço militar obrigatório é uma indecência
Um ano sem mulher batendo continência
Escravidão numa democracia é uma incoerência
Um ano sem mulher batendo continência
Um ano sem mulher
Só ralando (E o salário...)
Não leve a mal mas isso é coisa pra otário
Alguns podem até gostar da brincadeira
Mas o serviço só é bom pra quem quer seguir carreira militar
Mas rapá... pro Pensador não dá
Servindo o Exército, Marinha, Aeronáutica ou qualquer porra dessa
Num interessa
Eu ia ser um infeliz e ia ficar revoltado como eu nunca quis
Servindo quem montou a ditadura aqui no meu país!
Usando farda
Lavando o chão
Sem reclamar de nada pra num ser jogado na prisão
(Hum mas que situação)
Batendo continência e fazendo flexão
Para os caras que prenderam meu pai e mataram tantos outros institucionalizando a repressão (Não!)
Agora acorda e concorda com esse refrão
(E porque não?)
Porque o serviço militar obrigatório é uma indecência
Um ano sem mulher batendo continência
Escravidão numa democracia é uma incoerência
Um ano sem mulher batendo continência
Nas mãos dos militares muito jovem já morreu
Num quero ser soldado
Quem manda em mim sou eu
Isso é o defeito da nossa sociedade
Exijo mais respeito pela minha liberdade
Um ano da minha vida não pode ser gasto assim
Escravizado por quem nunca fez nada de bom por mim
Essa contradição alguém me explique um dia
Serviço obrigatório não combina com democracia
A porta abre e todos entram
Torcendo pra sobrar
Enquanto isso dá vontade de cantar:
Porque o serviço militar obrigatório é uma indecência
Um ano sem mulher batendo continência
Escravidão numa democracia é uma incoerência
Um ano sem mulher batendo continência