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sexta-feira, 24 de abril de 2015

Crônicas de um recruta - Parte 2

     Saudações, nobre leitores.

     Parece que aos poucos estou me tornando mais prolixo. Acontece que o meu cérebro está em plena reação química:
     Quando se começa, quase nunca se consegue deter o processo, e quando se consegue, mesmo assim nada será como antes....
     Bom, é aquela questão. Quando se faz o que se gosta, isto se torna uma espécie de vício, e pra lhes ser sincero, estou começando realmente a tomar gosto pela coisa.
     Enfim, sem mais delongas, a parte 2:


2

     Já ouviram alguma vez aquele ditado que diz “quando se olha para a chaleira ela nunca ferve”? Pois é. Esta única frase resume com perfeição o período entre o dia em que me alistei e o dia em que tive de madrugar para me apresentar no “20”. Não que durante este período eu estivesse na mais absoluta inatividade, mas é que, sem a escola e sem precisar estudar para nada, não tinha muita coisa com que preencher os meus dias a não ser ver TV - é claro - não mais do que uma hora por dia(não tenho saco pra ficar na frente dela por mais tempo que isso), ler alguma coisa( também não por muito tempo, as opções eram poucas e a biblioteca mais próxima de casa era a Biblioteca Pública, no centro da cidade), jogar conversa fora com meu irmão mais novo(ou ajudá-lo com seu dever de casa), ou ainda fazer pequenos “bicos”(carpir o exíguo lote da dona Aurora, ou puxar terra pro vizinho da frente aterrar o seu quintal dos fundos). Parece muita coisa, mas isso tudo ocupou na verdade não mais do que umas três ou quatro horas por dia. O restante era só um monte infinito de tédio.
     A única coisa de que me lembro com uma nitidez fora do comum neste período foi o dia em que completei 18 anos, em 25 de janeiro. Nesse dia, nada de festa, nem nada desse tipo, apenas aconteceu de meu pai me dizer, à noite, entrando na sala, após chegar do trabalho:
     - Meus parabéns, Flávio. A partir de hoje, você é um homem. - disse o velho, naquele seu inconfundível linguajar vago.
        - Obrigado, pai. - respondi, murcho.
Após isto, simplesmente virou as costas e seguiu em direção à cozinha. Poxa... pensei que ao menos ele me daria um abraço, um bom conselho paternal, ou ainda fazer-se orgulhoso pelo fato de seu primogênito atingir a assim chamada maioridade. Que nada! Mas, pensando melhor, talvez eu tivesse estranhado se fizesse isso, dado o padrão de comportamento dele. Para mim, não soaria verdadeiro. Neste caso, melhor que as coisas foram como foram. Quanto à minha mãe, bom, deixa pra lá.
     Dez de fevereiro, quatro e dez da matina. Sou acordado bruscamente por um velho despertador de corda que deve ser mais velho que eu. Ao levantar da cama, tonto de sono, me ocorre que este velho aparelho já foi jogado contra a parede muitas vezes e, no entanto, continua aí, firme e forte a nos lembrar de que “a vida é dura só pra quem é mole.” Hum...será mesmo? Fácil criticar quem tem fome quando se está de bucho cheio...
     Eh? Você aí! - me puxo a orelha – Acorda! Para de sonhar porque a realidade está te esperando!
Então eu noto através da porta do quarto entreaberta que a luz da cozinha está acesa, e que minha mãe está a lidar com o café. Fico verdadeiramente surpreso, porque faziam anos que ela não acordava tão cedo. Pelo jeito, este vai ser um dia incomum. Levanto, me troco, lavo a cara, vou escovar os dentes e depois entro na cozinha.
     - Bom dia, Flávio. - diz.
     - Bom dia, mãe. Por que acordada estas horas? - perguntei, mesmo a resposta sendo óbvia.
    - Bem, o seu compromisso vai começar muito cedo, e como acho que você vai ficar bastante tempo por lá, precisa de um café da manhã reforçado.
     - Poxa, obrigado mãe.
     - Não há de quê.
     “Que bicho mordeu ela?” Ah, não importa. Bom mesmo é que vou sair de casa com o porão cheio e, o melhor de tudo, não precisei fazer nada!
     Saio de casa às quatro e cinquenta para mergulhar na escuridão, a rua mal iluminada pelas poucas lâmpadas que não foram quebradas pela molecada da vila, na falta de algo melhor para se fazer. Por sorte, o alimentador já estava vindo, assim fiquei pouco tempo no ponto. Melhor assim. Estava frio e nunca foi uma boa ideia ficar sozinho numa parada de ônibus em plena madrugada, ainda mais levando-se em consideração a “quebrada” onde eu morava.
     Cerca de uma hora depois, desço do “latão”na avenida Erasto Gaertner, quase em frente à Base Aérea. Chego até o portão principal e me apresento ao sentinela. O sujeito olha para o documento que lhe apresento, e chama outro militar, que o tira bruscamente da mão do soldado, dá uma olhada de relance no papel e se dirige a mim. Sacudindo o CAM no ar e depois apontando com o dedo a parte superior do documento. Fala com rispidez:
     - O que está escrito aqui rapaz?
     - Como? - perguntei, desorientado.
     - Eu disse: O que está escrito AQUI? - perguntou novamente, mais ríspido ainda.
     - Ahn... Ministério da Defesa...
Ele vira o documento:
     - E nesse carimbo aqui? O que diz? - insiste ele, sempre apontado com o dedo.
     Olho em volta, e depois de ver melhor o maldito carimbo, começo a gaguejar quando me dou conta da minha estupidez:
     - Diz.... q-que e-eu...é...apres-presentar...20...
     - Aqui por acaso é o “20”?
     - Nã-não, senhor.
     - O “20” é lá! Entendeu? - Grita ele, apontando com o braço esquerdo para a entrada do batalhão, a uns trezentos metros atrás de onde estávamos, do mesmo lado da avenida.
     - S-sim...ahn...se-se...
     - CAI FORA DAQUI! - berra outra vez, devolvendo o meu miserável papel.
     Não sei se por conta da pressa, ou se por conta deste primeiro tratamento (de choque), saí correndo na direção indicada, me apresentando desta vez no local correto. O sentinela me indicou o outro militar a quem eu deveria me dirigir, e, acompanhado por este sargento(tão magro que parecia uma vareta enfiada dentro de uma gandola), fui levado através de um grande pátio interno até um grande auditório na parte da frente do quartel, onde já estavam uns trezentos indivíduos. A fina flor da juventude pobre de Curitiba.
     Naquela época - como creio que deve ser até hoje – o “20” era um quartel instalado numa estrutura antiquíssima, construída, segundo vim a saber mais tarde, bem antes da Segunda Guerra. Em 1921, para ser mais preciso. Desde então, nada tinha sido feito a não ser pinturas, manutenção e uma ou outra parede derrubada para a acomodação das necessidades do aquartelamento. Está instalado numa área enorme, de talvez uns 20 hectares, encravado no meio de uma das áreas mais nobres de Curitiba. É subdividido em diversos prédios não interligados onde funcionam em cada um deles a administração, intendência, refeitórios dos praças e dos oficiais, oficina, enfermaria, casa da guarda, armaria, dormitórios, auditório, almoxarifado, barracões de manutenção básica, entre outros. Também há uma grande área aberta onde estão as áreas de instrução de tiro, pista de atletismo, campo de futebol, área do cerimonial, horta, pista de obstáculos para exercícios da infantaria, pista de treinamento de condução de viaturas e blindados, etc. Por último, um predinho em separado em frente da área do cerimonial onde ficava(ou fica) instalada a sala do comandante, bem como as salas adjacentes do “oficial de dia” e dos demais responsáveis pela administração direta e indireta do batalhão.
     Bom, durante a espera a que fomos submetidos, não só pude observar quem estava ali, mas também imaginar os seus motivos. Algumas caras esperançosas, outras tristes. A maioria assustadas, sem dúvida com medo das histórias que certamente ouviram, narrando os sofrimentos e humilhações, reais ou fictícias que o filho-da-prima-do-cunhado-da-irmã-de-não-sei-quem teria sofrido durante o seu tempo de serviço.
     Alguns dos que tinham as caras esperançosas nem sequer sentaram-se. Ficaram de pé, naquela típica pose de “descansar!” que os militares adotam quando estão recebendo instrução, e que aqueles recrutas já engajados gostam de fazer dentro dos terminais quando estão indo pra casa fardados, estufando o peito para as menininhas que os olham, sabe, com aquele olhar pidão, e para alguns outros rapazes, que os olham com franca inveja...
     Quanto aos sentados, a maioria não se atrevia nem sequer a levantar a cabeça. Ficavam olhando o tempo todo para o piso de tacos daquele auditório, brilhando de uma forma que eu nunca tinha visto antes.(Não pude deixar de pensar, com ironia: “Quantas línguas foram necessárias para deixá-lo assim?”) Acho que estavam intimidados com o soldado que fora deixado na sala, postado numa das quinas do recinto, com a tarefa de vigiar-nos – creio eu – até que o pessoal responsável pela seleção se dignasse a aparecer. Por falar no dito cujo, só reparei em sua presença após alguns minutos, depois de tecer estas considerações que acabei de narrar. Comecei então a observá-lo, discretamente, para tentar entender pelo que via se a vida de um “pé-de-poeira” era tudo aquilo que dizia a lenda. Tarefa difícil, aliás, impossível. É como tentar escrever a resenha de um livro só pela capa. O que deu pra notar é que o “bicho” não exprimia nada naquela sua pobre fisionomia opaca de idiota. Talvez tivesse passado a noite em claro, de serviço por alguma infração cometida, ou estava morrendo de tédio - assim como eu – naquela sua imobilidade forçada. Outra vez, comecei a lembrar daquela música do Gabriel o Pensador:

...serviço militar obrigatório é uma incoerência
um ano sem mulher, batendo continência
um ano sem mulher,
só ralando (e o salário)
não leve a mal mas isso é coisa pra otário!...”

     Silêncio impressionante. Ninguém fala, ninguém se mexe. E assim fico eu, estacionado lá como um carro quebrado.

     Bom, por hora é isso.
     Logo, logo, a parte 3.
     Aguardem!

3 comentários:

  1. Gabriel o Pensador - Indecência Militar
    https://www.youtube.com/watch?v=ds13OylOe74

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  2. http://letras.mus.br/gabriel-pensador/96134/

    Indecência Militar
    Gabriel O Pensador

    Na porta do local do alistamento militar (indecência) esperando pela hora de entrar
    De saco cheio estava eu lá (paciência)
    Sem nenhuma mulher pra agarrar e nenhum som pra escutar
    E um monte de marmanjo do meu lado eu vi
    Então pensei: "Porra. O quê que eu tô fazendo aqui?"
    (Pergunta sem resposta) e raiva lá dentro
    Foi assim que eu fiz o rap pra passar o tempo

    Porque o serviço militar obrigatório é uma indecência
    Um ano sem mulher batendo continência
    Escravidão numa democracia é uma incoerência
    Um ano sem mulher batendo continência

    Um ano sem mulher
    Só ralando (E o salário...)
    Não leve a mal mas isso é coisa pra otário
    Alguns podem até gostar da brincadeira
    Mas o serviço só é bom pra quem quer seguir carreira militar
    Mas rapá... pro Pensador não dá
    Servindo o Exército, Marinha, Aeronáutica ou qualquer porra dessa
    Num interessa
    Eu ia ser um infeliz e ia ficar revoltado como eu nunca quis
    Servindo quem montou a ditadura aqui no meu país!
    Usando farda
    Lavando o chão
    Sem reclamar de nada pra num ser jogado na prisão
    (Hum mas que situação)
    Batendo continência e fazendo flexão
    Para os caras que prenderam meu pai e mataram tantos outros institucionalizando a repressão (Não!)
    Agora acorda e concorda com esse refrão
    (E porque não?)

    Porque o serviço militar obrigatório é uma indecência
    Um ano sem mulher batendo continência
    Escravidão numa democracia é uma incoerência
    Um ano sem mulher batendo continência

    Nas mãos dos militares muito jovem já morreu
    Num quero ser soldado
    Quem manda em mim sou eu
    Isso é o defeito da nossa sociedade
    Exijo mais respeito pela minha liberdade
    Um ano da minha vida não pode ser gasto assim
    Escravizado por quem nunca fez nada de bom por mim
    Essa contradição alguém me explique um dia
    Serviço obrigatório não combina com democracia
    A porta abre e todos entram
    Torcendo pra sobrar
    Enquanto isso dá vontade de cantar:

    Porque o serviço militar obrigatório é uma indecência
    Um ano sem mulher batendo continência
    Escravidão numa democracia é uma incoerência
    Um ano sem mulher batendo continência

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