Olá, pessoal.
Hoje publico o quarto fascículo - que também foi escrito no último fim de semana - onde o Flávio nos conta mais um pouco de suas experiências naquela fria manhã de fevereiro de 1997.
Apreciem:
Hoje publico o quarto fascículo - que também foi escrito no último fim de semana - onde o Flávio nos conta mais um pouco de suas experiências naquela fria manhã de fevereiro de 1997.
Apreciem:
4
Durante
este novo período de espera, entre ponderações e observações,
novamente eu dirigi minha atenção para o nosso "guarda".
E percebi, desta vez, que nos olhava dissimuladamente, com um
discreto esboço de sorriso-de-canto-de-boca. Estranho. De uma
fisionomia totalmente amorfa - ainda há pouco - a outra que denota
uma quase que incontida satisfação. O que teria acontecido lá fora
que provocou tamanha mudança na postura do sujeito? Mistério...
Olho ao redor, parece que mais ninguém notou isso. Mas também, como
notar qualquer coisa à sua volta quando se olha apenas para o chão?
"Cambada de bundão!" - pensei - quase que em voz alta.
Nunca vi tanta gente com tanto medo assim. Era tão espesso que dava
para pegá-lo no ar e amassar com os dedos, que nem massinha de
modelar. E pensar que muitos que estavam ali talvez fossem
considerados os valentões de suas escolas ou das "vilas"
onde moravam. Com certeza, depois de passada a experiência,
chegariam em casa ou na vizinhança fazendo pose e contando um monte
de lorota, dizendo-se os tais...
Olho
para o relógio da parede nos fundos do palco e vejo que já se
passaram dezoito minutos. Lembro da ordem do "viking" e
tomo a iniciativa de me levantar e seguir em direção à porta,
virando assim o "testa" da fila, como integrante do segundo
"lote". Vendo minha atitude, os outros, de acordo com sua
ordem de numeração seguiram-me no gesto. Em pouco mais de um
minuto, a "quadragésima" já estava formada.
Mas,
foi só quase dez minutos depois que o "jagunço" chegou,
fazendo uma expressão de contida surpresa. Pelo jeito, até então
isso ainda não tinha acontecido. Confere nossos CAM's um por um -
processo que dura mais uns cinco minutos - conforme fez com os
sujeitos da primeira leva(no famoso estilo cara-crachá) e diz,
simplesmente:
- Sigam-me, conscritos.
Saímos
do auditório virando à esquerda, passando por aquele pátio bem
cuidado por que passei ao entrar(e que descobri então que era a área
do cerimonial, por causa dos mastros e das bandeiras já hasteadas).
Atravessamos a rua principal, qua dá acesso ao interior do quartel
virando em seguida à direita e seguindo por uma calçada de
petit-pavet,
passando
pelo prédio à nossa esquerda onde se lia em letras pintadas de
verde em cima da porta principal: Refeitório dos Oficiais. Andamos
mais uns cinquenta metros e novamente viramos à esquerda, indo em
direção ao prédio que tinha as mesmas letras pintadas em verde que
diziam: Enfermaria.
No
Brasil e em outros países - pelo menos até onde sei - as
instalações dos quartéis são(ou foram) todas pensadas e
construídas obedecendo a um determinado padrão geral. É claro, há
também as suas excessões, mas em casos muito específicos para
atender necessidades ainda mais específicas de determinados ramos
das Forças, dados o grau de especialização e características de
operação de certas Unidades. Muito bem, esta lógica de projeto é
o de "cidade de interior", com prédios e instalações
maiores como se fossem "bairros"(invariavelmente a área do
cerimonial seria o "centro", e a sala do coronel
comandante, a "prefeitura"), interligados por suas ruas e
avenidas - em caso de quartéis maiores - com placas de sinalização
e indicativas, faixas de pedestres, calçadas pavimentadas, bancos
de praça instalados nos passeios, lixeiras em espaçamentos
equidistantes, arborização, jardins, postes com iluminação, etc.
Enfim, uma mini urbe - uma verdadeira "cidade-estado" -
murada e vigiada vinte e quatro horas por dia dentro de uma outra
"polis"
muito maior.
O
sargento nos manda parar e esperar, e adentra no prédio. Notei que
estavam em fila, com os ombros quase encostados à parede do lado de
fora, alguns sujeitos da primeira leva. Eram doze. Quatro deles
pareciam aliviados. Os outros estavam abatidos e não se preocupavam
em esconder isto. Pelo menos dois estavam quase às lágrimas.(Um era
baixote e gordinho. O outro magro e comprido como uma salsicha) Logo
entendi. Os eliminados já de cara, logo na primeira etapa. Aí eu
comecei a "matutar"...
O que desclassifica um sujeito logo na fase dos exames médicos?
Caspa? Frieira? Unha encravada? Acne? Mau hálito? Dente torto? Não
tive tempo de conjecturar respostas, porque depressa voltei a mim,
quando o "jagunço" nos ordenou a entrar.
A
enfermaria era um prédio de tamanho médio(se comparado aos demais),
mais comprido do que largo, com um corredor central que se comunicava
com salas relativamente grandes de ambos os seus lados, cada uma
delas abrigando um setor diferente, tais como leitos, sala dos
oficiais médicos e dentistas, sala dos praças enfermeiros, depósito
de suprimentos, sala de exames médicos e odontológicos, entre
outras. Eram mais iluminadas do que os corredores, que tinham
lâmpadas incandescentes que não davam totalmente conta do recado,
talvez por causa do piso de tacos escuros, que brilhava tanto quanto
o piso do auditório nos pontos onde a luz do dia caía sobre ele.
Entramos
corredor adentro e fomos conduzidos até última sala no lado
esquerdo, que fora transformada em um espécie de posto de triagem. O
interior foi organizado com várias mesas em sequência, encostadas
no lado esquerdo da sala, uma atrás da outra. Na frente de cada mesa
- também encostada na parede - uma balança daquelas antigas, de
ponteiro, que acho que foram usadas nas farmácias no tempo em que
farmácia se escrevia com "ph". Em cada uma delas estava
postado um militar integrante do corpo médico. No outro lado, vários
biombos colocados lado a lado de comprido - como que dividindo a sala
em duas - deixando apenas espaços abertos próximos às paredes,
para a entrada e saída.
O
sargento para na porta, vira-se e manda os primeiros dez entrarem
para o começo dos exames. Cada um de nós é orientado a sentar-se
em cada uma das cadeiras, que foram colocadas nas laterais esquerdas
das mesas. Após sentarmos, o "jagunço" entra e se posta
nos fundos - de costas para a parede - bem defronte da divisão
criada pelos biombos, onde ele pode ver os dois lados da sala.
Sento-me
na primeira cadeira. O enfermeiro me pede o certificado e enquanto o
lê, ordena-me a tirar a jaqueta e qualquer outra peça de roupa -
que cobrisse o torso - que porventura eu esteja vestindo. Sou
obrigado a ficar sem camisa. Estava bem frio, diga-se de passagem. O
enfermeiro escreve meu nome("recuperei minha identidade!"),
meu número de conscrito(que ele tinha tomado nota antes de eu tirar
a "jaca") e outras informações extraídas do CAM em outra
ficha. Em seguida, retira um estetoscópio de uma maleta, se levanta
e faz aqueles exames chatos, com aquela "ponta" gelada:
- Inspire. Ok, agora expire.
Ele
ausculta o peito, as costas, o estômago, o "pânceps",
examina os batimentos, falo "33", essa coisa toda. Verifica
a pressão e com uma lanterna me examina os olhos com aquele
lazarento
daquele facho ofuscante. Fiquei vendo estrelinhas por uma boa meia
hora. O engraçado é que só depois de me "cegar" é que o
infeliz me manda ler um cartaz com aquelas letrinhas de exame
oftalmológico instalada à minha esquerda, entre a balança e a
mesa(e que não tinha reparado que estava ali). Quando eu não
conseguia por um momento identificar um daqueles minúsculos
simbolozinhos, ele insistia:
-
Vamos, conscrito. O que está escrito lá?
-
Mas senhor, ainda estou ofuscado pelo facho da lanterna! - protestei
eu.
-
Não te perguntei nada, conscrito. O que está escrito LÁ? -
insistiu, pouco se lixando.
Viram
o que eu falei sobre a empatia e paciência? No final dessa
chateação, devo ter acertado tudo(ainda que eu tenha "chutado"
alguns na última desgraçada linha) porque o enfermeiro não
insistiu mais. Depois disso, pesagem - 88 quilos - e aferição da
altura - 1,87 metros - que estava exatamente de acordo com o
certificado. Anota todos os dados colhidos durante o exame na ficha e
diz:
-
Conscrito 49, tudo ok aqui. Faça o favor de se dirigir para o outro
lado daquele biombo e aguarde novas instruções. - disse ele, me
entregando o CAM.
-
A propósito - prossegue - não vista ainda suas "peças"(
referindo-se, por óbvio à jaqueta e à camisa).
Levanto-me,
pego a roupa que tinha estendido nas costas da cadeira e vou para o
lugar indicado. Quando passo pelo sargento, ele me indica com o braço
onde devo me posicionar. Já haviam dois dos meus "camaradas"
ali, cada um deles em pé, com uma gamela branca de plástico atrás
de si,(igualzinho aquelas de açougue) onde eles tinham colocado sua
peças de roupa de cima. Imitei seu gesto, colocando também minha
"traia" no "meu" "cocho". No canto
oposto à saída dos biombos, notei uma espécie de guidão de
bicicleta conectado a cabos e um mostrador em forma de relógio, como
os das balanças. Fiquei ali em pé, de braços cruzados por causa do
frio e esperando. Em pouco tempo, os outros sete se juntam a nós.
Formamos duas fileiras de cinco cada, ficando frente a frente.
- Conscritos, atenção! Todos nus, agora! - ordena o "jagunço".
Esta
ordem repentina me atingiu como um raio:
- Como, senhor? - respondi, incrédulo.
- Está surdo, 49? Eu disse todos nus, em pelo! E JÁ!
Nos
entreolhamos, embasbacados. Meus "colegas" estão com os
olhos esbugalhados, suas caras descompostas. Devo estar igual. De
todas as histórias já contadas sobre recrutamento, eu nunca tinha
ouvido falar que teríamos de ficar pelados diante de um bando de
estranhos. Dada a surpresa dos outros, parece que também não
souberam de nada parecido. Pelo jeito, essa parte era omitida porque
não servia pra ninguém contar vantagem.
Lentamente,
começamos a tirar os calçados, a desabotoar e abaixar a calças.
Já tirar a cueca foi toda uma história, porque fui assaltado por
uma série de dúvidas: "Cacete!
Não me lembro de ter trocado de cueca ontem! Será que esqueci? E
meu 'toba',
lavei direito? E com o 'zezinho', tá
'tudo em riba'?"
Quando
consegui terminar a operação e joguei o resto dos "baxeiros"
na gamela branca, tomei o cuidado de verificar furtivamente se não
havia nenhuma "freiada" no meu "pano de bunda",
nem que fosse só para desencargo de consciência. Pequeno consolo:
tudo em ordem. Velho, nunca senti tanta vergonha em toda a minha
vida. Quando me endireitei, ouvi a ordem:
-
Sentido!
Ficamos
naquela posição, à espera do que quer que fosse. Mas, mermão,
quando eu disse "o que quer que fosse", definitivamente não
estava me referindo a aquilo.
De repente, notei que os outros estavam olhando - de rabo de olho -
com as caras vermelhas para o sujeito da ponta, do meu lado direito.
Discretamente olhei para onde seus olhos apontavam e fiquei chocado.
O cidadão estava com a "ferramenta" - como direi? - em
"módulo de batalha".
"Caraio!
Que diabo de 'satanais' é ISSO?"
Eu
nem sequer terminei de formular na minha cabeça essa interjeição,
quando com a velocidade de um tigre, o Barreto - o sargento "jagunço"
Barreto - avançou de onde estava e desferiu - com uma tonfa saída
não sei de onde - um golpe certeiro no "pescoço" da
"pirrôla"
do cara:
"Meu,
isso dói paca..."
-
...Que "baitolagem" é essa 041? O que por todos os
demônios é ISSO seu viado filho-de-uma-quenga? - urra ele,
apontando com o cassetete para o "bicho" que já se
encolhia todo, como um animal encurralado.
Imediatamente
eu compreendo porque – ele especificamente - estava preocupado com
ter de tirar a roupa. Sabia que na certa ia se revelar...ui...! O
indivíduo, quase chorando, encurvado por causa da pancada e com as
duas mãos cobrindo o "objeto da discórdia", só conseguia
cuspir as palavras, tentando se explicar:
-...Eu...estava
pensando...na minha namorada!...Pensando...na minha!
...pensando...na...minha...namo...
-
Tua namorada é o “meu bago”! Pega os teus trapos e SUMA DAQUI!
JÁ!
-
Mas, mas.....
- Se eu ouvir mais uma só palavra sua vou te mandar pro xilindró! CAI
FORA! DESAPAREÇA DA MINHA FRENTE! - o homem bufa e baba,
apoplético.Vejo nitidamente as veias das suas têmporas dilatadas.
Grossas gotas de suor se formam em sua testa apesar do frio da sala.
O
miserável se veste numa velocidade incomum e sai detrás dos biombos
o mais rápido que consegue. Impossível não deixar de notar que ele
anda com as pernas abertas e o tronco ligeiramente inclinado para a
frente, como um cowboy
que acaba de apear depois de uma longa cavalgada. Ouço risos
contidos, com certeza dos outros militares que estão logo ali ao
lado. E apesar do absurdo da situação em que me encontrava, começo
a rir também, no que sou seguido pelos demais. O único que não
acha graça nenhuma é o "jagunço", que se retira da sala,
acredito eu para conduzir o pobre diabo ao sargento Guimarães.
Súbito, imagino o CDI do sujeito:
"Data
da seleção: 10 de fevereiro de 1997.
Motivo
da dispensa de incorporação: Viadagem."
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