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terça-feira, 28 de abril de 2015

Crônicas de um recruta - Parte 4

Olá, pessoal.

Hoje publico o quarto fascículo - que também foi escrito no último fim de semana - onde o Flávio nos conta mais um pouco de suas experiências naquela fria manhã de fevereiro de 1997.

Apreciem:





4

     Durante este novo período de espera, entre ponderações e observações, novamente eu dirigi minha atenção para o nosso "guarda". E percebi, desta vez, que nos olhava dissimuladamente, com um discreto esboço de sorriso-de-canto-de-boca. Estranho. De uma fisionomia totalmente amorfa - ainda há pouco - a outra que denota uma quase que incontida satisfação. O que teria acontecido lá fora que provocou tamanha mudança na postura do sujeito? Mistério... Olho ao redor, parece que mais ninguém notou isso. Mas também, como notar qualquer coisa à sua volta quando se olha apenas para o chão? "Cambada de bundão!" - pensei - quase que em voz alta. Nunca vi tanta gente com tanto medo assim. Era tão espesso que dava para pegá-lo no ar e amassar com os dedos, que nem massinha de modelar. E pensar que muitos que estavam ali talvez fossem considerados os valentões de suas escolas ou das "vilas" onde moravam. Com certeza, depois de passada a experiência, chegariam em casa ou na vizinhança fazendo pose e contando um monte de lorota, dizendo-se os tais...
     Olho para o relógio da parede nos fundos do palco e vejo que já se passaram dezoito minutos. Lembro da ordem do "viking" e tomo a iniciativa de me levantar e seguir em direção à porta, virando assim o "testa" da fila, como integrante do segundo "lote". Vendo minha atitude, os outros, de acordo com sua ordem de numeração seguiram-me no gesto. Em pouco mais de um minuto, a "quadragésima" já estava formada.
     Mas, foi só quase dez minutos depois que o "jagunço" chegou, fazendo uma expressão de contida surpresa. Pelo jeito, até então isso ainda não tinha acontecido. Confere nossos CAM's um por um - processo que dura mais uns cinco minutos - conforme fez com os sujeitos da primeira leva(no famoso estilo cara-crachá) e diz, simplesmente:
     - Sigam-me, conscritos.
     Saímos do auditório virando à esquerda, passando por aquele pátio bem cuidado por que passei ao entrar(e que descobri então que era a área do cerimonial, por causa dos mastros e das bandeiras já hasteadas). Atravessamos a rua principal, qua dá acesso ao interior do quartel virando em seguida à direita e seguindo por uma calçada de petit-pavet, passando pelo prédio à nossa esquerda onde se lia em letras pintadas de verde em cima da porta principal: Refeitório dos Oficiais. Andamos mais uns cinquenta metros e novamente viramos à esquerda, indo em direção ao prédio que tinha as mesmas letras pintadas em verde que diziam: Enfermaria.
     No Brasil e em outros países - pelo menos até onde sei - as instalações dos quartéis são(ou foram) todas pensadas e construídas obedecendo a um determinado padrão geral. É claro, há também as suas excessões, mas em casos muito específicos para atender necessidades ainda mais específicas de determinados ramos das Forças, dados o grau de especialização e características de operação de certas Unidades. Muito bem, esta lógica de projeto é o de "cidade de interior", com prédios e instalações maiores como se fossem "bairros"(invariavelmente a área do cerimonial seria o "centro", e a sala do coronel comandante, a "prefeitura"), interligados por suas ruas e avenidas - em caso de quartéis maiores - com placas de sinalização e indicativas, faixas de pedestres, calçadas pavimentadas, bancos de praça instalados nos passeios, lixeiras em espaçamentos equidistantes, arborização, jardins, postes com iluminação, etc. Enfim, uma mini urbe - uma verdadeira "cidade-estado" - murada e vigiada vinte e quatro horas por dia dentro de uma outra "polis" muito maior.
     O sargento nos manda parar e esperar, e adentra no prédio. Notei que estavam em fila, com os ombros quase encostados à parede do lado de fora, alguns sujeitos da primeira leva. Eram doze. Quatro deles pareciam aliviados. Os outros estavam abatidos e não se preocupavam em esconder isto. Pelo menos dois estavam quase às lágrimas.(Um era baixote e gordinho. O outro magro e comprido como uma salsicha) Logo entendi. Os eliminados já de cara, logo na primeira etapa. Aí eu comecei a "matutar"... O que desclassifica um sujeito logo na fase dos exames médicos? Caspa? Frieira? Unha encravada? Acne? Mau hálito? Dente torto? Não tive tempo de conjecturar respostas, porque depressa voltei a mim, quando o "jagunço" nos ordenou a entrar.
    A enfermaria era um prédio de tamanho médio(se comparado aos demais), mais comprido do que largo, com um corredor central que se comunicava com salas relativamente grandes de ambos os seus lados, cada uma delas abrigando um setor diferente, tais como leitos, sala dos oficiais médicos e dentistas, sala dos praças enfermeiros, depósito de suprimentos, sala de exames médicos e odontológicos, entre outras. Eram mais iluminadas do que os corredores, que tinham lâmpadas incandescentes que não davam totalmente conta do recado, talvez por causa do piso de tacos escuros, que brilhava tanto quanto o piso do auditório nos pontos onde a luz do dia caía sobre ele.
     Entramos corredor adentro e fomos conduzidos até última sala no lado esquerdo, que fora transformada em um espécie de posto de triagem. O interior foi organizado com várias mesas em sequência, encostadas no lado esquerdo da sala, uma atrás da outra. Na frente de cada mesa - também encostada na parede - uma balança daquelas antigas, de ponteiro, que acho que foram usadas nas farmácias no tempo em que farmácia se escrevia com "ph". Em cada uma delas estava postado um militar integrante do corpo médico. No outro lado, vários biombos colocados lado a lado de comprido - como que dividindo a sala em duas - deixando apenas espaços abertos próximos às paredes, para a entrada e saída.
O sargento para na porta, vira-se e manda os primeiros dez entrarem para o começo dos exames. Cada um de nós é orientado a sentar-se em cada uma das cadeiras, que foram colocadas nas laterais esquerdas das mesas. Após sentarmos, o "jagunço" entra e se posta nos fundos - de costas para a parede - bem defronte da divisão criada pelos biombos, onde ele pode ver os dois lados da sala.
Sento-me na primeira cadeira. O enfermeiro me pede o certificado e enquanto o lê, ordena-me a tirar a jaqueta e qualquer outra peça de roupa - que cobrisse o torso - que porventura eu esteja vestindo. Sou obrigado a ficar sem camisa. Estava bem frio, diga-se de passagem. O enfermeiro escreve meu nome("recuperei minha identidade!"), meu número de conscrito(que ele tinha tomado nota antes de eu tirar a "jaca") e outras informações extraídas do CAM em outra ficha. Em seguida, retira um estetoscópio de uma maleta, se levanta e faz aqueles exames chatos, com aquela "ponta" gelada:
     - Inspire. Ok, agora expire.
     Ele ausculta o peito, as costas, o estômago, o "pânceps", examina os batimentos, falo "33", essa coisa toda. Verifica a pressão e com uma lanterna me examina os olhos com aquele lazarento daquele facho ofuscante. Fiquei vendo estrelinhas por uma boa meia hora. O engraçado é que só depois de me "cegar" é que o infeliz me manda ler um cartaz com aquelas letrinhas de exame oftalmológico instalada à minha esquerda, entre a balança e a mesa(e que não tinha reparado que estava ali). Quando eu não conseguia por um momento identificar um daqueles minúsculos simbolozinhos, ele insistia:
     - Vamos, conscrito. O que está escrito lá?
     - Mas senhor, ainda estou ofuscado pelo facho da lanterna! - protestei eu.
     - Não te perguntei nada, conscrito. O que está escrito LÁ? - insistiu, pouco se lixando.
Viram o que eu falei sobre a empatia e paciência? No final dessa chateação, devo ter acertado tudo(ainda que eu tenha "chutado" alguns na última desgraçada linha) porque o enfermeiro não insistiu mais. Depois disso, pesagem - 88 quilos - e aferição da altura - 1,87 metros - que estava exatamente de acordo com o certificado. Anota todos os dados colhidos durante o exame na ficha e diz:
     - Conscrito 49, tudo ok aqui. Faça o favor de se dirigir para o outro lado daquele biombo e aguarde novas instruções. - disse ele, me entregando o CAM.
    - A propósito - prossegue - não vista ainda suas "peças"( referindo-se, por óbvio à jaqueta e à camisa).
     Levanto-me, pego a roupa que tinha estendido nas costas da cadeira e vou para o lugar indicado. Quando passo pelo sargento, ele me indica com o braço onde devo me posicionar. Já haviam dois dos meus "camaradas" ali, cada um deles em pé, com uma gamela branca de plástico atrás de si,(igualzinho aquelas de açougue) onde eles tinham colocado sua peças de roupa de cima. Imitei seu gesto, colocando também minha "traia" no "meu" "cocho". No canto oposto à saída dos biombos, notei uma espécie de guidão de bicicleta conectado a cabos e um mostrador em forma de relógio, como os das balanças. Fiquei ali em pé, de braços cruzados por causa do frio e esperando. Em pouco tempo, os outros sete se juntam a nós. Formamos duas fileiras de cinco cada, ficando frente a frente.
     - Conscritos, atenção! Todos nus, agora! - ordena o "jagunço".
Esta ordem repentina me atingiu como um raio:
     - Como, senhor? - respondi, incrédulo.
     - Está surdo, 49? Eu disse todos nus, em pelo! E JÁ!
Nos entreolhamos, embasbacados. Meus "colegas" estão com os olhos esbugalhados, suas caras descompostas. Devo estar igual. De todas as histórias já contadas sobre recrutamento, eu nunca tinha ouvido falar que teríamos de ficar pelados diante de um bando de estranhos. Dada a surpresa dos outros, parece que também não souberam de nada parecido. Pelo jeito, essa parte era omitida porque não servia pra ninguém contar vantagem.
     Lentamente, começamos a tirar os calçados, a desabotoar e abaixar a calças. Já tirar a cueca foi toda uma história, porque fui assaltado por uma série de dúvidas: "Cacete! Não me lembro de ter trocado de cueca ontem! Será que esqueci? E meu 'toba', lavei direito? E com o 'zezinho', tá 'tudo em riba'?"
     Quando consegui terminar a operação e joguei o resto dos "baxeiros" na gamela branca, tomei o cuidado de verificar furtivamente se não havia nenhuma "freiada" no meu "pano de bunda", nem que fosse só para desencargo de consciência. Pequeno consolo: tudo em ordem. Velho, nunca senti tanta vergonha em toda a minha vida. Quando me endireitei, ouvi a ordem:
     - Sentido!
     Ficamos naquela posição, à espera do que quer que fosse. Mas, mermão, quando eu disse "o que quer que fosse", definitivamente não estava me referindo a aquilo. De repente, notei que os outros estavam olhando - de rabo de olho - com as caras vermelhas para o sujeito da ponta, do meu lado direito. Discretamente olhei para onde seus olhos apontavam e fiquei chocado. O cidadão estava com a "ferramenta" - como direi? - em "módulo de batalha".

"Caraio! Que diabo de 'satanais' é ISSO?"

     Eu nem sequer terminei de formular na minha cabeça essa interjeição, quando com a velocidade de um tigre, o Barreto - o sargento "jagunço" Barreto - avançou de onde estava e desferiu - com uma tonfa saída não sei de onde - um golpe certeiro no "pescoço" da "pirrôla" do cara:

"Meu, isso dói paca..."

     - ...Que "baitolagem" é essa 041? O que por todos os demônios é ISSO seu viado filho-de-uma-quenga? - urra ele, apontando com o cassetete para o "bicho" que já se encolhia todo, como um animal encurralado.
     Imediatamente eu compreendo porque – ele especificamente - estava preocupado com ter de tirar a roupa. Sabia que na certa ia se revelar...ui...! O indivíduo, quase chorando, encurvado por causa da pancada e com as duas mãos cobrindo o "objeto da discórdia", só conseguia cuspir as palavras, tentando se explicar:
 -...Eu...estava pensando...na minha namorada!...Pensando...na minha! ...pensando...na...minha...namo...
      - Tua namorada é o “meu bago”! Pega os teus trapos e SUMA DAQUI! JÁ!
      - Mas, mas.....
    - Se eu ouvir mais uma só palavra sua vou te mandar pro xilindró! CAI FORA! DESAPAREÇA DA MINHA FRENTE! - o homem bufa e baba, apoplético.Vejo nitidamente as veias das suas têmporas dilatadas. Grossas gotas de suor se formam em sua testa apesar do frio da sala.
     O miserável se veste numa velocidade incomum e sai detrás dos biombos o mais rápido que consegue. Impossível não deixar de notar que ele anda com as pernas abertas e o tronco ligeiramente inclinado para a frente, como um cowboy que acaba de apear depois de uma longa cavalgada. Ouço risos contidos, com certeza dos outros militares que estão logo ali ao lado. E apesar do absurdo da situação em que me encontrava, começo a rir também, no que sou seguido pelos demais. O único que não acha graça nenhuma é o "jagunço", que se retira da sala, acredito eu para conduzir o pobre diabo ao sargento Guimarães. Súbito, imagino o CDI do sujeito:

"Data da seleção: 10 de fevereiro de 1997.


Motivo da dispensa de incorporação: Viadagem."

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