Olá, pessoas!
No post inaugural expliquei, ou ao menos tentei explicar o porque deste blog e como ele - mais ou menos - funcionaria, sem no entanto seguir uma linha assim tão rígida, desde que se enquadre dentro da cultura e principalmente de uma de suas subdivisões; a literatura.
Lembram-se que escrevi que iria começar com contos?
"Sim, nos lembramos."
Então, vou postar hoje o início de um conto, que dividirei em fascículos, por motivos práticos.
"Como assim?"
Bom, irei publicá-los à medida em que os escrevo, - o que não está sendo muito fácil devido ao tempo curto - bem como este formato torna o conteúdo mais interessante.
Sendo assim, sem mais delongas, a primeira parte.
Espero que gostem.
Crônicas
de um recruta
1
“
...No ano em que completar 18 anos, procure a Junta de Serviço
Militar em sua cidade e aliste-se. Serviço militar; a segurança do
Brasil em nossas mãos...”
Me
estico preguiçosamente no sofá – numa cinzenta manhã de sábado,
num já longínquo janeiro de 1997 - assistindo a este anúncio na TV
que já tinha se tornado uma “tradição” – quase que um mantra
- repetido à exaustão naquela época do ano, que se estendia de
janeiro a abril. Subitamente - como se não me desse conta da
passagem do tempo – percebo que vou completar os fatídicos dezoito
dentro de duas semanas. A partir desta reflexão, um caleidoscópio
de pensamentos contraditórios invadem minha mente como uma
enxurrada.
Lembranças
de conselhos “bons” ou “maus” de amigos, parentes e
familiares a respeito do serviço militar. “Isso é pura perda de
tempo” ou “você quer mesmo ser mais um escravo do governo?”,
diziam uns, enquanto outros: “ Todo homem deveria servir, na minha
opinião” ou ainda “ o tempo passado no exército é uma lição
de vida!”
Sou
assaltado por uma súbita pressão que nunca havia sentido antes, um
negócio meio esquisito, meio gelado. Olhando pra trás, hoje percebo
que isso nada mais era do que entender que daquela época em diante,
era EU quem deveria decidir sobre meu rumo na vida, meu futuro(sim,
porque até então, todas tinham sido tomadas no “automático” ou
em consequência de anteriores, na maioria não por mim). E a
primeira grande decisão com que se confronta um projeto de gente
grande é justamente essa:
“Servir, or not servir, that is the question.”
Falando
assim, desse jeito, parece que o negócio é inescapável, sem saída,
como se o sujeito tivesse descoberto que tem um câncer em estado
terminal ou adquirido AIDS. Mas, a única coisa obrigatória mesmo é
o alistamento. As demais etapas do processo são – como direi? -
improváveis no Brasil, sácumé,
né?(Em especial se os seus primeiros passos foram no carpete, e não
na terra do quintal) Sempre há o seu jeitinho. Ainda mais se o
cidadão puder contar com as limitações e deficiências do governo,
que se refletem em praticamente todas as coisas que lhe dizem
respeito, mas particularmente – na minha opinião – nas Forças
Armadas.
Os
“maus” conselheiros me diziam que, como o período de alistamento
se estendia(naquela época) por longos quatro meses, seria mais fácil
eu me safar se fosse até a Junta lá pro final de abril. Já os
“bons,” por outro lado, me aconselhavam a me alistar em janeiro
por duas razões. A primeira; poder escolher uma das três forças –
Exército, Marinha ou Força Aérea – e a segunda; ter certeza de
que eu seria “engajado” pois, dizia a lenda que os critérios de
seleção de recrutas obedeciam apenas a ordem de chegada(quanta
ignorância...).
Meus
pais eram indiferentes com relação à minha escolha, até porque
nunca se interessaram muito por qualquer coisa relativa às vidas
minha e de meu irmão, que é cinco anos mais novo que eu. Achavam
eles que apenas prover o necessário sustento já era tarefa por
demais árdua para acrescentar o que quer que fosse, seja de atenção,
companhia, supervisão ou disciplina. Assim, vejo hoje que é um
verdadeiro milagre nós dois não termos escolhido os piores caminhos
que este mundo tem a oferecer. Mas, esta é outra história.
Saído
do ensino médio no final do ano anterior, com o vestibular feito e
conhecido o resultado(bomba!), e como o próximo vestibular seria só
ali por meados de junho, estava completamente à deriva naquele
começo de ano.
Mais
um motivo para estar com aquele frio desgraçado na barriga. Não
queria ter de passar por aquilo tudo de novo. As horas intermináveis
trancado em casa estudando, a ausência absoluta de diversão e as
poucas horas de sono, e tudo para quê? Para chegar no prédio da
Reitoria lá na Federal apenas para acotovelar-se com milhares de
outras almas torturadas, procurando freneticamente seu nome na lista
dos aprovados e chegar à conclusão, incrédulo, que os todos os
sacrifícios dos dois anos anteriores foram inúteis?
Depois
disso, os dias foram passando devagar e, sem muita coisa pra fazer,
comecei a pensar de verdade se o serviço militar poderia mesmo ser
para mim uma opção real. Sempre fui um sujeito analítico,
introspectivo, que pensa mais do que fala e que gosta de analisar com
calma as coisas. Pesei todos os prós e contras e acabei chegando à
conclusão de que eu poderia tentar, afinal, não tinha nada a perder
mesmo. Até porque ensino médio nunca foi profissão, jovens em
“época de quartel” em hipótese alguma conseguem emprego, e as
atividades digamos, “informais” oferecidas na periferia estavam
fora de cogitação. Ademais, as garotas em geral gostam de caras de
uniforme, e ganhar um soldo miserável é melhor do que nada,
principalmente em tempos bicudos como aqueles que o país atravessava
pela enésima vez.
Com
esta ideia consolidada na cabeça, lá fui eu na Junta de Serviço
Militar na segunda feira seguinte. Saí de casa às cinco e meia da
manhã. Não estava frio - por mais que Curitiba seja uma cidade
gelada – porque era janeiro, mas caía uma garoa fina daquelas
que,quando começam, duram dias. Depois de descer da estação tubo
na praça Nossa Senhora de Salete e andar alguns quarteirões, me
enfiei debaixo da marquise e tratei de me resignar a esperar(já
estavam por ali uma meia dúzia de gatos pingados, que deveriam estar
pensando como eu). Pra matar o tempo, trouxe comigo – dentro da
mochila - algumas revistas de quadrinhos do Asterix (década de
noventa, nada de tablet's ou celulares com joguinhos...)afanadas da
banca de jornais do meu tio que ficava no Cristo Rei, e que foi de
sua propriedade por muitos anos. Naquela época, a Junta ficava na
Mateus Leme, em um predinho baixo com uma fachada de pedras brutas,
estreito e comprido, com alguns guichês ocupados por funcionários
civis que, diga-se de passagem, nem sempre davam conta do serviço,
viviam mal humorados e trabalhavam numa lentidão enervante. Pra
complicar, nunca haviam cadeiras ou espaço suficiente de modo que
muitos ficavam em pé por longas horas e muitas vezes em filas que se
formavam rapidamente na calçada, chegando a dobrar a esquina. Por
este motivo saí tão cedo de casa. Queria cumprir o meu “dever
cívico” e passar para a fase seguinte o mais rápido possível.
Eram
seis e meia, dia claro por causa do horário de verão. Como a Junta
só abria às oito, fique lá esperando, perdido nas aventuras dos
integrantes da última aldeia gaulesa que não fora ocupada por Roma.
Graças a esta distração, só me dei conta das horas quando ouvi a
movimentação dos funcionários abrindo as portas do posto. Entrei e
me acomodei em uma cadeira. Sentado lá, pensando na vida(já tinha
lido todas as revistas durante a espera lá fora) comecei a me
lembrar de uma música de um sujeito que fez muito sucesso na década
de noventa, chamado Gabriel o Pensador. Chama-se “Indecência
Militar”, que ele compôs justamente quando estava na mesma
situação que eu. Instintivamente, comecei a cantarolar baixinho a
letra que eu conhecia muito bem:
“Serviço
militar obrigatório é uma incoerência,
Um
ano sem mulher, batento continência...”
Meia
hora depois fui chamado ao guichê três para entregar a papelada e
começar o processo. Sem olhar para meus documentos, o cidadão
começou a fazer perguntas, murmurando entre os dentes, num tipo de
voz que eu poderia descrever como algo intermediário entre um gemido
e um arroto:
- Nome?
- Flávio Santos Barbosa.
- Data de nascimento?
- 25 de janeiro de 1979.
- Endereço?
- Rua João Tobias de Paiva Netto, 332.
- Bairro?
- Cajuru.
- Grau de Instrução?
- Ensino médio completo.
- Altura?
- 1,87 metro.
- Biotipo?
- Caucasiano. – pensei com meus botões - será que esse desgraçado
não tem olhos?
- Ok – disse ele – aguarde uns minutos.
Fique
lá, sentado na frente daquele sujeito com cara de anta gorda,
enquanto ele martelava furiosamente no teclado do computador os dados
fornecidos verbalmente, até que finalmente se dignou a folhear o
calhamaço que eu trouxera, à cata do restante das informações de
que precisava para terminar o preenchimento do CAM.
Levantou-se,
foi até a barulhenta impressora e voltou com o documento, no qual
colou uma das duas fotos 3X4 que são pedidas na lista de requisição
do Ministério da Defesa. No verso do formulário padrão, uma série
de espaços pré impressos para carimbos, onde o homem apôs o
primeiro deles, que dizia:
“Apresente-se
no dia 10 de fevereiro de 1997 no 20° BIB às 06:00 horas para fins
de recrutamento e seleção.”
A
data, o quartel e o horário foram preenchidos a caneta. Ao olhar
para aquela designação, não pude deixar de me perguntar -
praguejando baixinho - o porque dos militares serem assim tão
fissurados pelas primeiras ou as últimas horas do dia.
O
CAM me foi entregue, meti-o na mochila e saí de lá o mais depressa
possível, pois ainda não tinha tomado café e meu estômago já
deixava claro que não estava nada satisfeito com a minha
negligência. Como a única coisa que eu tinha de valor no bolso da
calça jeans surrada que estava vestindo era um vale transporte,
tratei de pegar o primeiro interbairros que apareceu - ainda que
lotado – para aplacar com urgência aqueles roncos desagradáveis
com uma frugal refeição matutina que deveria estar posta à mesa,
deixada lá por minha mãe ao sair para seu trabalho.
Continua...
Até a próxima!
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