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quinta-feira, 23 de abril de 2015

Crônicas de um recruta - Parte 1

     Olá, pessoas!
       No post inaugural expliquei, ou ao menos tentei explicar o porque deste blog e como ele - mais ou menos - funcionaria, sem no entanto seguir uma linha assim tão rígida, desde que se enquadre dentro da cultura e principalmente de uma de suas subdivisões; a literatura.
      Lembram-se que escrevi que iria começar com contos?

     "Sim, nos lembramos."

     Então, vou postar hoje o início de um conto, que dividirei em fascículos, por motivos práticos.

     "Como assim?"

     Bom, irei publicá-los à medida em que os escrevo, - o que não está sendo muito fácil devido ao tempo curto - bem como este formato torna o conteúdo mais interessante.
     Sendo assim, sem mais delongas, a primeira parte.
      Espero que gostem.



Crônicas de um recruta

1

 “ ...No ano em que completar 18 anos, procure a Junta de Serviço Militar em sua cidade e aliste-se. Serviço militar; a segurança do Brasil em nossas mãos...”
Me estico preguiçosamente no sofá – numa cinzenta manhã de sábado, num já longínquo janeiro de 1997 - assistindo a este anúncio na TV que já tinha se tornado uma “tradição” – quase que um mantra - repetido à exaustão naquela época do ano, que se estendia de janeiro a abril. Subitamente - como se não me desse conta da passagem do tempo – percebo que vou completar os fatídicos dezoito dentro de duas semanas. A partir desta reflexão, um caleidoscópio de pensamentos contraditórios invadem minha mente como uma enxurrada.
     Lembranças de conselhos “bons” ou “maus” de amigos, parentes e familiares a respeito do serviço militar. “Isso é pura perda de tempo” ou “você quer mesmo ser mais um escravo do governo?”, diziam uns, enquanto outros: “ Todo homem deveria servir, na minha opinião” ou ainda “ o tempo passado no exército é uma lição de vida!”
     Sou assaltado por uma súbita pressão que nunca havia sentido antes, um negócio meio esquisito, meio gelado. Olhando pra trás, hoje percebo que isso nada mais era do que entender que daquela época em diante, era EU quem deveria decidir sobre meu rumo na vida, meu futuro(sim, porque até então, todas tinham sido tomadas no “automático” ou em consequência de anteriores, na maioria não por mim). E a primeira grande decisão com que se confronta um projeto de gente grande é justamente essa:

“Servir, or not servir, that is the question.”

     Falando assim, desse jeito, parece que o negócio é inescapável, sem saída, como se o sujeito tivesse descoberto que tem um câncer em estado terminal ou adquirido AIDS. Mas, a única coisa obrigatória mesmo é o alistamento. As demais etapas do processo são – como direi? - improváveis no Brasil, sácumé, né?(Em especial se os seus primeiros passos foram no carpete, e não na terra do quintal) Sempre há o seu jeitinho. Ainda mais se o cidadão puder contar com as limitações e deficiências do governo, que se refletem em praticamente todas as coisas que lhe dizem respeito, mas particularmente – na minha opinião – nas Forças Armadas.
     Os “maus” conselheiros me diziam que, como o período de alistamento se estendia(naquela época) por longos quatro meses, seria mais fácil eu me safar se fosse até a Junta lá pro final de abril. Já os “bons,” por outro lado, me aconselhavam a me alistar em janeiro por duas razões. A primeira; poder escolher uma das três forças – Exército, Marinha ou Força Aérea – e a segunda; ter certeza de que eu seria “engajado” pois, dizia a lenda que os critérios de seleção de recrutas obedeciam apenas a ordem de chegada(quanta ignorância...).
     Meus pais eram indiferentes com relação à minha escolha, até porque nunca se interessaram muito por qualquer coisa relativa às vidas minha e de meu irmão, que é cinco anos mais novo que eu. Achavam eles que apenas prover o necessário sustento já era tarefa por demais árdua para acrescentar o que quer que fosse, seja de atenção, companhia, supervisão ou disciplina. Assim, vejo hoje que é um verdadeiro milagre nós dois não termos escolhido os piores caminhos que este mundo tem a oferecer. Mas, esta é outra história.
   Saído do ensino médio no final do ano anterior, com o vestibular feito e conhecido o resultado(bomba!), e como o próximo vestibular seria só ali por meados de junho, estava completamente à deriva naquele começo de ano.
     Mais um motivo para estar com aquele frio desgraçado na barriga. Não queria ter de passar por aquilo tudo de novo. As horas intermináveis trancado em casa estudando, a ausência absoluta de diversão e as poucas horas de sono, e tudo para quê? Para chegar no prédio da Reitoria lá na Federal apenas para acotovelar-se com milhares de outras almas torturadas, procurando freneticamente seu nome na lista dos aprovados e chegar à conclusão, incrédulo, que os todos os sacrifícios dos dois anos anteriores foram inúteis?
     Depois disso, os dias foram passando devagar e, sem muita coisa pra fazer, comecei a pensar de verdade se o serviço militar poderia mesmo ser para mim uma opção real. Sempre fui um sujeito analítico, introspectivo, que pensa mais do que fala e que gosta de analisar com calma as coisas. Pesei todos os prós e contras e acabei chegando à conclusão de que eu poderia tentar, afinal, não tinha nada a perder mesmo. Até porque ensino médio nunca foi profissão, jovens em “época de quartel” em hipótese alguma conseguem emprego, e as atividades digamos, “informais” oferecidas na periferia estavam fora de cogitação. Ademais, as garotas em geral gostam de caras de uniforme, e ganhar um soldo miserável é melhor do que nada, principalmente em tempos bicudos como aqueles que o país atravessava pela enésima vez.
     Com esta ideia consolidada na cabeça, lá fui eu na Junta de Serviço Militar na segunda feira seguinte. Saí de casa às cinco e meia da manhã. Não estava frio - por mais que Curitiba seja uma cidade gelada – porque era janeiro, mas caía uma garoa fina daquelas que,quando começam, duram dias. Depois de descer da estação tubo na praça Nossa Senhora de Salete e andar alguns quarteirões, me enfiei debaixo da marquise e tratei de me resignar a esperar(já estavam por ali uma meia dúzia de gatos pingados, que deveriam estar pensando como eu). Pra matar o tempo, trouxe comigo – dentro da mochila - algumas revistas de quadrinhos do Asterix (década de noventa, nada de tablet's ou celulares com joguinhos...)afanadas da banca de jornais do meu tio que ficava no Cristo Rei, e que foi de sua propriedade por muitos anos. Naquela época, a Junta ficava na Mateus Leme, em um predinho baixo com uma fachada de pedras brutas, estreito e comprido, com alguns guichês ocupados por funcionários civis que, diga-se de passagem, nem sempre davam conta do serviço, viviam mal humorados e trabalhavam numa lentidão enervante. Pra complicar, nunca haviam cadeiras ou espaço suficiente de modo que muitos ficavam em pé por longas horas e muitas vezes em filas que se formavam rapidamente na calçada, chegando a dobrar a esquina. Por este motivo saí tão cedo de casa. Queria cumprir o meu “dever cívico” e passar para a fase seguinte o mais rápido possível.
     Eram seis e meia, dia claro por causa do horário de verão. Como a Junta só abria às oito, fique lá esperando, perdido nas aventuras dos integrantes da última aldeia gaulesa que não fora ocupada por Roma. Graças a esta distração, só me dei conta das horas quando ouvi a movimentação dos funcionários abrindo as portas do posto. Entrei e me acomodei em uma cadeira. Sentado lá, pensando na vida(já tinha lido todas as revistas durante a espera lá fora) comecei a me lembrar de uma música de um sujeito que fez muito sucesso na década de noventa, chamado Gabriel o Pensador. Chama-se “Indecência Militar”, que ele compôs justamente quando estava na mesma situação que eu. Instintivamente, comecei a cantarolar baixinho a letra que eu conhecia muito bem:

Serviço militar obrigatório é uma incoerência,
Um ano sem mulher, batento continência...”

     Meia hora depois fui chamado ao guichê três para entregar a papelada e começar o processo. Sem olhar para meus documentos, o cidadão começou a fazer perguntas, murmurando entre os dentes, num tipo de voz que eu poderia descrever como algo intermediário entre um gemido e um arroto:
     - Nome?
     - Flávio Santos Barbosa.
     - Data de nascimento?
     - 25 de janeiro de 1979.
     - Endereço?
     - Rua João Tobias de Paiva Netto, 332.
     - Bairro?
     - Cajuru.
     - Grau de Instrução?
     - Ensino médio completo.
     - Altura?
     - 1,87 metro.
     - Biotipo?
     - Caucasiano. – pensei com meus botões - será que esse desgraçado não tem olhos?
     - Ok – disse ele – aguarde uns minutos.
     Fique lá, sentado na frente daquele sujeito com cara de anta gorda, enquanto ele martelava furiosamente no teclado do computador os dados fornecidos verbalmente, até que finalmente se dignou a folhear o calhamaço que eu trouxera, à cata do restante das informações de que precisava para terminar o preenchimento do CAM.
     Levantou-se, foi até a barulhenta impressora e voltou com o documento, no qual colou uma das duas fotos 3X4 que são pedidas na lista de requisição do Ministério da Defesa. No verso do formulário padrão, uma série de espaços pré impressos para carimbos, onde o homem apôs o primeiro deles, que dizia:
“Apresente-se no dia 10 de fevereiro de 1997 no 20° BIB às 06:00 horas para fins de recrutamento e seleção.”
     A data, o quartel e o horário foram preenchidos a caneta. Ao olhar para aquela designação, não pude deixar de me perguntar - praguejando baixinho - o porque dos militares serem assim tão fissurados pelas primeiras ou as últimas horas do dia.


     O CAM me foi entregue, meti-o na mochila e saí de lá o mais depressa possível, pois ainda não tinha tomado café e meu estômago já deixava claro que não estava nada satisfeito com a minha negligência. Como a única coisa que eu tinha de valor no bolso da calça jeans surrada que estava vestindo era um vale transporte, tratei de pegar o primeiro interbairros que apareceu - ainda que lotado – para aplacar com urgência aqueles roncos desagradáveis com uma frugal refeição matutina que deveria estar posta à mesa, deixada lá por minha mãe ao sair para seu trabalho.

Continua...

Até a próxima!

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