Olá, nobres e fiéis leitores!
É sempre um prazer escrever estas crônicas. Bom, pra mim é um prazer escrever qualquer coisa - aproveitável - é claro!
Amigos, o Flávio - como ser humano que é - tem os mesmos dilemas e questionamentos que assolam a todos nós. Ao ler esta parte, perguntem-se o que fariam diante das perguntas que surgem em sua mente? Como se sentiriam? O que pensariam?
Se quiserem colocar suas impressões nos comentários, sintam-se à vontade.
Vejamos;
30
Depois
daquela "excelente" recepção que tivemos, fomos
conduzidos ao rancho para o café da manhã. Como a maioria de nós
já tinha enchido o porão em casa, muitos pediram dispensa ao
"jagunço". Fazia todo o sentido. Pra quê sobrecarregar o
estômago levando-se em conta que os pesados exercícios programados
para aquela manhã poderiam fazer muito "neguinho" passar
mal? Outra coisa: O "kahool" que servia-se naquele
refeitório era de doer. Apesar da razoabilidade do argumento, sua
reação foi no mínimo estranha:
-
Permissão negada! Vocês vão comer essa merda! Ou estão por acaso
pensando que os taifeiros são empregados que podem ser dispensados a
qualquer momento? Eles se levantaram antes do toque da alvorada para
providenciar a boia para a tropa - incluindo vocês - bando de
vermes! Não vão jogar tudo fora agora só porque as beldades estão
de frescura! Vão entrando! E ISSO É UMA ORDEM!!!
Eita
ferro! Vão nos obrigar a comer agora? O que virá depois? Se já
querem controlar nossas bocas, o que dizer dos nossos "tobas"?
Vão regular quando e se poderemos "largar o barro"?
Bom,
nada a fazer. Enfileiramos, pegamos as bandejas e fazemos o melhor
possível para consumir aquelas substâncias. Meus amigos se acercam
de mim. O único que não encontrara no Terminal Cabral era o
Vinícius, porque o pai dele trabalhava numa agência bancária ali
perto e o deixou em frente ao batalhão no caminho para o trabalho.
Devo dizer que não foi fácil para ninguém, evidentemente. Com uma
exceção: O Jackson. Sempre ele! Aquele sujeito devorava tudo o que
caía na sua frente. Enquanto atacava vorazmente a sua bandeja, eu, o
Sandro e o Vinícius nos entreolhávamos assombrados. O "armário"
, entre um bocado e outro, nos olhava sorrindo mais que uma criança
numa loja de doces. A certa altura me pergunta:
-
Vai comer isso aí, Flávio? - diz, apontando com os olhos para um
cascudo, escuro e lambuzado pão francês.
Eu
pego-o, jogo em sua bandeja e digo:
-
Bom apetite.
Ao
ver isso, os outros dois amigos fazem o mesmo. Ele nada diz. Apenas
sorri novamente, assentindo com a cabeça como se nos fizesse uma
reverência. Nesse meio tempo, pudemos colocar a conversa em dia,
informando-nos sobre o que cada um tinha feito no fim de semana.
Constatamos todos que fizemos praticamente o mesmo; comer, dormir e
relaxar. Apenas o Vinícius fez algo além disso: Estudou um pouco,
se preparando para o concurso da EsSA, como tinha me dito antes. Me
espanto:
-
Velho, mas este concurso vai ser apenas no fim do ano!
-
Eu sei. Já estou atrasado. - responde, com aquela sua típica
expressão eslava.
-
Sim, mas você não me disse que faria o oficialato?
-
Um degrau de cada vez, Flávio. Já sargento, farei curso superior.
Depois, AMAN.
Aí,
ele me olha nos olhos com a expressão mais inquisitiva e séria que
alguma vez vi em sua feição:
-
E você? - questiona, olhando-me fixamente.
Travei.
Aquilo me atingiu com força. Não tinha pensado nisso. Abaixo a
cabeça e olho para a bandeja, refletindo naquelas breves e oportunas
palavras do meu amigo. Por que meu pai nunca me disse isso antes?
Foi
aí que me dei conta: Sem alvos, não há esforço. Sem esforço, não
há progresso... Quais os meus objetivos? Que rumo eu daria para
minha vida? O que eu faria para alcançá-los? Quando começaria?
Senti novamente aquele frio na barriga, que aumentava a cada uma das
perguntas que formulei. Eu tinha chegado até ali mais por
necessidade e impulso do que qualquer outra coisa. Mas, e daqui pra
frente? Continuaria os estudos? Que curso faria? Tentaria continuar
no Exército ou cumpriria apenas meu tempo de serviço obrigatório?
Um filme que começa na Reitoria da Federal, passa pelo anúncio do
alistamento na TV, por todo o processo de seleção e termina na
última sexta-feira passa instantaneamente diante dos meus olhos.
Foi
então que o frio na barriga se transformou em medo. Medo do futuro.
Medo por não saber o que fazer. Medo das minhas perspectivas futuras
se não agisse rápido. E claro, medo do fracasso. De ficar
exatamente como o meu pai que, ao meu ver, não tinha a menor
perspectiva para a sua vida. Apenas trabalhar por muitos anos em
duras condições, aposentar-se com um salário de fome e então
esperar a morte chegar. Serei eu apenas mais um Celso Barbosa?
Sou
arrancado das minhas reflexões por um puxão forte na manga esquerda
da gandola. Ao ver meu estado de hipnose, o Sandro a puxou quando
ouviu a ordem do "jagunço" para que a recrutagem
entregasse as bandejas e formasse lá fora para o início da
instrução programada para aquele dia. Olho para o Vinícius, que me
retribui o olhar sem nada dizer. Apenas se levanta para entregar as
suas "ferramentas" e cumprir o resto da ordem do sargento.
Bom, nosso papo continua em outra ocasião.
Nenhum comentário:
Postar um comentário