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quarta-feira, 23 de março de 2016

Crônicas de um recruta - parte 30

     Olá, nobres e fiéis leitores!

     É sempre um prazer escrever estas crônicas. Bom, pra mim é um prazer escrever qualquer coisa - aproveitável - é claro!

     Amigos, o Flávio - como ser humano que é - tem os mesmos dilemas e questionamentos que assolam a todos nós. Ao ler esta parte, perguntem-se o que fariam diante das perguntas que surgem em sua mente? Como se sentiriam? O que pensariam?

     Se quiserem colocar suas impressões nos comentários, sintam-se à vontade.

     Vejamos;




30


     Depois daquela "excelente" recepção que tivemos, fomos conduzidos ao rancho para o café da manhã. Como a maioria de nós já tinha enchido o porão em casa, muitos pediram dispensa ao "jagunço". Fazia todo o sentido. Pra quê sobrecarregar o estômago levando-se em conta que os pesados exercícios programados para aquela manhã poderiam fazer muito "neguinho" passar mal? Outra coisa: O "kahool" que servia-se naquele refeitório era de doer. Apesar da razoabilidade do argumento, sua reação foi no mínimo estranha:
     - Permissão negada! Vocês vão comer essa merda! Ou estão por acaso pensando que os taifeiros são empregados que podem ser dispensados a qualquer momento? Eles se levantaram antes do toque da alvorada para providenciar a boia para a tropa - incluindo vocês - bando de vermes! Não vão jogar tudo fora agora só porque as beldades estão de frescura! Vão entrando! E ISSO É UMA ORDEM!!!

Eita ferro! Vão nos obrigar a comer agora? O que virá depois? Se já querem controlar nossas bocas, o que dizer dos nossos "tobas"? Vão regular quando e se poderemos "largar o barro"?

     Bom, nada a fazer. Enfileiramos, pegamos as bandejas e fazemos o melhor possível para consumir aquelas substâncias. Meus amigos se acercam de mim. O único que não encontrara no Terminal Cabral era o Vinícius, porque o pai dele trabalhava numa agência bancária ali perto e o deixou em frente ao batalhão no caminho para o trabalho. Devo dizer que não foi fácil para ninguém, evidentemente. Com uma exceção: O Jackson. Sempre ele! Aquele sujeito devorava tudo o que caía na sua frente. Enquanto atacava vorazmente a sua bandeja, eu, o Sandro e o Vinícius nos entreolhávamos assombrados. O "armário" , entre um bocado e outro, nos olhava sorrindo mais que uma criança numa loja de doces. A certa altura me pergunta:
     - Vai comer isso aí, Flávio? - diz, apontando com os olhos para um cascudo, escuro e lambuzado pão francês.
Eu pego-o, jogo em sua bandeja e digo:
     - Bom apetite.
Ao ver isso, os outros dois amigos fazem o mesmo. Ele nada diz. Apenas sorri novamente, assentindo com a cabeça como se nos fizesse uma reverência. Nesse meio tempo, pudemos colocar a conversa em dia, informando-nos sobre o que cada um tinha feito no fim de semana. Constatamos todos que fizemos praticamente o mesmo; comer, dormir e relaxar. Apenas o Vinícius fez algo além disso: Estudou um pouco, se preparando para o concurso da EsSA, como tinha me dito antes. Me espanto:
     - Velho, mas este concurso vai ser apenas no fim do ano!
     - Eu sei. Já estou atrasado. - responde, com aquela sua típica expressão eslava.
     - Sim, mas você não me disse que faria o oficialato?
     - Um degrau de cada vez, Flávio. Já sargento, farei curso superior. Depois, AMAN.
Aí, ele me olha nos olhos com a expressão mais inquisitiva e séria que alguma vez vi em sua feição:
     - E você? - questiona, olhando-me fixamente.
Travei. Aquilo me atingiu com força. Não tinha pensado nisso. Abaixo a cabeça e olho para a bandeja, refletindo naquelas breves e oportunas palavras do meu amigo. Por que meu pai nunca me disse isso antes?
     Foi aí que me dei conta: Sem alvos, não há esforço. Sem esforço, não há progresso... Quais os meus objetivos? Que rumo eu daria para minha vida? O que eu faria para alcançá-los? Quando começaria? Senti novamente aquele frio na barriga, que aumentava a cada uma das perguntas que formulei. Eu tinha chegado até ali mais por necessidade e impulso do que qualquer outra coisa. Mas, e daqui pra frente? Continuaria os estudos? Que curso faria? Tentaria continuar no Exército ou cumpriria apenas meu tempo de serviço obrigatório? Um filme que começa na Reitoria da Federal, passa pelo anúncio do alistamento na TV, por todo o processo de seleção e termina na última sexta-feira passa instantaneamente diante dos meus olhos.
     Foi então que o frio na barriga se transformou em medo. Medo do futuro. Medo por não saber o que fazer. Medo das minhas perspectivas futuras se não agisse rápido. E claro, medo do fracasso. De ficar exatamente como o meu pai que, ao meu ver, não tinha a menor perspectiva para a sua vida. Apenas trabalhar por muitos anos em duras condições, aposentar-se com um salário de fome e então esperar a morte chegar. Serei eu apenas mais um Celso Barbosa?

     Sou arrancado das minhas reflexões por um puxão forte na manga esquerda da gandola. Ao ver meu estado de hipnose, o Sandro a puxou quando ouviu a ordem do "jagunço" para que a recrutagem entregasse as bandejas e formasse lá fora para o início da instrução programada para aquele dia. Olho para o Vinícius, que me retribui o olhar sem nada dizer. Apenas se levanta para entregar as suas "ferramentas" e cumprir o resto da ordem do sargento. Bom, nosso papo continua em outra ocasião.


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